quinta-feira, 1 de julho de 2010

Vida, angústia e superação do mal

Marco Antonio Schmitt


David Hume, nos seus “Diálogos sobre a Religião Natural”, de 1779, discute a estruturação de alguns dos argumentos mais conhecidos para tratar da questão fundamental “Deus existe”. Estão lá defendidos, e com as respectivas objeções, o argumento cosmológico, segundo o qual da existência do mundo se deduz Deus; o argumento do desígnio, segundo o qual da ordem verificada no mundo se deduz a existência de um Deus ordenador; e o problema do mal, que funciona de modo inverso, ou seja, se existe um Deus onipotente e benevolente como o teísta propõe, qual a justificativa para a existência do mal e do sofrimento no mundo.

Os diálogos são conduzidos por três personagens chamados Filo, Cleanthes e Demea. Filo é o porta-voz do próprio autor, Hume, e faz o papel de um sutil defensor do ateísmo.

Já Demea tem um visão muito pessimista do mundo. Segundo ela, as pessoas levam uma vida miserável e estão inseridas numa realidade melancólica. A miséria se apresenta sob a forma de males de toda ordem, males físicos e morais. A passagem mais contundente na defesa desse modo de ver o mundo está no seguinte parágrafo, no qual Demea se dirige a Filo:

Crê em mim, Filo, a Terra inteira é amaldiçoada e poluída. Uma guerra suja perpétua está acesa entre todas as criaturas vivas. Necessidade, fome e desejo estimulam o forte e o corajoso; medo, ansiedade e terror agitam o fraco e o enfermo. A primeira entrada na vida dá angústia à criança recém-nascida e aos seus pais infelizes; fraqueza, impotência e aflição atendem a cada estágio dessa vida e, finalmente, ela acaba em agonia e horror.

A vida cotidiana do século XVIII na Escócia, terra natal de Hume, certamente foi inspiradora na descrição de Demea. Não é preciso citar fontes de pesquisa de modo muito preciso para afirmar que as dificuldades da vida enfrentadas pelos concidadãos do autor eram muitas, mesmo na Europa. A expectativa de vida média da população era inferior à metade da que se conhece hoje, o sistema público de saúde não existia, as condições de higiene eram precárias, proliferavam doenças cujo tratamento correto ou a cura não se conhecia e as instituições públicas de justiça e segurança ainda estavam dando os primeiros passos. Os poucos privilegiados que alcançavam uma idade mais avançada, não raro deveriam sofrer muito com as doenças próprias da velhice e não encontrar o necessário apoio para aliviar suas dores.

Um mundo assim não poderia ser caracterizado de modo diferente daquele descrito por Demea. Um lugar amaldiçoado e poluído, onde alguns poucos privilegiados conseguiam sobreviver, mas ainda assim submetidos a adversidades inacreditáveis, cujo fim era o horror.

O discurso religioso tinha um importante papel a desempenhar numa sociedade conturbada por tantos problemas. Se o sofrimento físico e a perturbação psíquica eram a regra, haveria de se esperar pelo alívio, pela esperança e pela calmaria em algum outro momento.

Mas a pergunta de Hume no Diálogo não é pela explicação de como esses males diários são superáveis, ou se haveria algum momento posterior à vida que pudesse, eventualmente, compensá-los. A questão para Hume era clássica, ela queria saber por que esses males cercavam e afligiam os homens do seu tempo se, como se dizia, um Deus poderoso e benevolente havia criado o mundo. Hume queria saber se havia coerência na afirmação dessa divindade e se seria possível justificar a sua verdade com a existência do mal no mundo.

O que se pretende ressaltar aqui não é o acerto ou desacerto das opiniões Hume sobre a religião natural. O ponto a ser debatido é a espécie de mal que os Diálogos examinam e a sua relação com o sujeito, o homem enquanto ente e conceito hoje.

O mal dos Diálogos está fora do sujeito. Ele está no mundo e cerca os homens e todas as coisas como se fosse uma segunda atmosfera. Uma névoa terrível que traz consequências desagradáveis desde o nascimento até a morte do sujeito. O mal é uma guerra suja entre as criaturas vivas que está à espreita das suas vítimas com dores físicas e psíquicas. Não há como evitar a sua presença, fracos e fortes são afetados com angústia e desespero. Cria-se um mundo às avessas: a vida é sofrimento, o nascimento de uma nova vida é motivo de infelicidade.

Esta névoa pestilenta, que lembra as piores descrições que se tem da Idade Média e dos miseráveis que cercavam as cidadelas, não encontra justificativa no sujeito, na sua constituição fundamental. Ela não foi criada por ele. Ele, o sujeito, é que fora jogado nesse ambiente hostil e, em princípio, não lhe será proporcionada a salvação.

Mas essa seria, certamente, a sua única esperança. Alguém poderá salvá-lo, afinal o mundo em que ele está abandonado não foi criado por Deus Todo-Poderoso, conhecido por sua benevolência? Supõe-se, portanto, que o contemporâneo de Hume alimentava alguma esperança de se sentir prestigiado e amado por aquele que, na sua fé, era o ente de maior bondade existente.

O sujeito também poderia, de outra forma, libertar-se da sua fé cega e avaliar de modo racional a sua situação. E aqui Hume se transfigura no Filo do Diálogo. O mal neste mundo, a dor, a angústia, a depressão, a violência, podem então ser evidências da ausência de Deus. E esta é uma explicação possível: o homem foi deixado num mundo que é essencialmente maléfico, que o tortura desde o nascimento até a morte e não lhe permite esperança concreta de alívio futuro. Um Deus poderoso e benevolente, criador do próprio homem, não faria isso, logo, sua afirmação só pode ser falsa. Esta não é a conclusão de Hume, mas poderia ter sido.

Modernamente esse mundo sem Deus não é mais uma explicação satisfatória. A complexidade social aumentou, as crenças religiosas e a ciência passaram por transformações. Mais do que isso, a noção de sujeito também mudou.

As incertezas e o sofrimento do homem atual não mais podem ser atribuídos a fatores que lhe são externos, mas ter sua justificação encontrada no próprio homem.

Freud e as suas teses do psiquismo dividido, no qual o Eu não tem mais a autonomia e a liberdade que se pensava, são, em parte, motivo para essa mudança. A subjetividade, o Eu, o Ego, noção absolutamente irredutível e fundamental até Hegel, não é o ponto de partida fundamental do pensamento enquanto liberdade. Ela, a subjetividade, não é livre, pois está ilhada internamente. Ela não é expressão de liberdade, pois há um ponto obscuro do psiquismo, totalmente fora de controle, que condiciona e interfere no seu modo de expressão. O inconsciente faz do sujeito, do Ego, uma ilha numa noite escura. Não se sabe o que vem pela frente, nem o que vem por baixo, mas há sempre uma expectativa de conturbação, de retorno de algo terrível.

A expressão do Ego, por isso, está contaminada pelos sintomas dessa segunda instância, o mar escuro e revolto se jogando contra o sujeito consciente. A linguagem do sujeito não é mais clara, ela precisa ser interpretada. Seus gestos involuntários e sua fala truncada, sua aparente incapacidade de fazer ou ser, são resultados do retorno involuntário de situações trancafiadas na noite escura do inconsciente psíquico.

Dessa insegurança subjetiva resulta a angústia, a fraqueza, a insegurança e a impotência relatadas por Demea. O sujeito que, modernamente, atende com maior facilidade suas necessidades vitais, trata de suas doenças, sofre muito menos fisicamente por causa delas, mas continua sob o efeito de um mal moral que não é muito diverso daquele do tempo de Demea.

É o caso de se reafirmar um mundo no qual Deus está ausente? Não, pois é o próprio sujeito que se descobre como fonte do mal.

O sujeito se vê, modernamente, prisioneiro do seu próprio mal. Se o mundo hoje é, de modo geral – descontados os cantos obscuros de violência e miséria de alguns continentes – mais amistoso ao homem, se as transformações por ele mesmo operadas tornaram a vida humana menos sofrida fisicamente e aumentaram a expectativa de sobrevivência significativamente, o sofrimento psíquico, que Freud localizou no interior do próprio homem, esse não foi extirpado.

A visão mágica do mundo, em que o homem é o ente dominado criado por um Deus benevolente e contraditório, que é perseguido por males do mundo, é substituída modernamente por outra, que racionalmente defende uma subjetividade ilhada pelo inconsciente irracional.

Com uma diferença sutil. Se para Demea o fim sempre é a agonia e o horror, o sujeito moderno tem esperança na psicanálise. A esperança sobre algo que transcende o mal aparente dos tempos Hume: o sujeito acredita que, pensando sobre o seu próprio pensamento, reconstruindo as suas memórias e vivências, ele consegue melhorar a sua própria estrutura. Afinal, a fonte do mal que lhe causa a dita dor moral ele conhece e é totalmente insuspeita: é ele próprio.

2 comentários:

  1. Gostei das ligações e comparações. Acrescentaria apenas, sem contradizer nada do que foi dito, que o sofrimento, na época de Hume não era apenas causado por um mundo externo natural, mas pelos outros, e que o sofrimento do sujeito moderno não é apenas interno, mas vem também de fora, em grande parte causado pelos outros. Como diria Sartre, L'enfer c'est les autres, e cada um de nós é o outro para os outros.

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  2. Excelente observação. A referência ao outro não pode ser esquecida neste tema. Minha objeção parcial ao comentário, todavia, é que o outro é mais um motivo de incompreensão do que causa externa de sofrimento. Se a comunicação exercesse um papel mais eficiente e o sujeito moderno tivesse uma compreensão mais esclarecida da sua realidade, do momento histórico que vive, voltar-se-ia à interioridade. Quer dizer, superada a diferença da incomunicação, que tem sua causa no Eu e não no outro, resta novamente o sujeito infernizado pelos seus mais escuros fantasmas interiores.

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