sexta-feira, 30 de julho de 2010

III – Repetir, padronizar e diferenciar: o movimento de síntese do pensamento

Marco Antonio Schmitt

Este é o terceiro ensaio no qual pretendo descrever, ainda de forma absolutamente intuitiva, o que são as estruturas mais básicas do pensamento. Aqui o objetivo é concluir a primeira tríade e afirmar que as duas estruturas estáticas anteriormente apresentadas – autorreferência e começo – compõem o ato de pensar enquanto movimento que se apoia na repetição, induzindo uma sequência que alterna padronização e diferenciação.

A repetição e a formação de padrões – de comportamento, de atividades – são comuns em nossa vida diária, tanto no lugar onde moramos e trabalhamos, quanto na nossa casa e no nosso modo de sobreviver.

A cidade onde nos estabelecemos está assentada na repetição diária de infinitas ações e atividades padronizadas. Diariamente as ruas mantêm os mesmos sentidos de direção, os sinais de trânsito são os mesmos, as linhas de ônibus fazem o mesmo percurso, os restaurantes servem refeições nos mesmos lugares e horários, os cardápios desses restaurantes são os mesmos dentro de certos períodos de tempo, os hospitais recebem e tratam pacientes nos mesmos lugares, as redes de televisão e rádio apresentam a mesma programação, entre outras tantas situações que poderiam ser descritas. Qualquer alteração de tais rotinas, em regra, exige alguma forma de informação que possa evitar o efeito da surpresa. De outro modo, a quebra da rotina por circunstâncias inevitáveis, como acidentes e outros fatos que fogem ao controle da previsibilidade, novamente interrompe uma expectativa de repetição e aciona outra série de atos que visam retomar a normalidade – a repetição anterior.

O lugar onde moramos também tem sua estrutura básica assentada em repetições, algumas vezes mais e outras menos visíveis. No caso de um prédio de apartamentos, a repetição de ações no condomínio é inerente à sua própria existência. Diariamente os elevadores atendem aos mesmos andares, os serviços de limpeza recolhem o lixo, os portões das saídas de garagem abrem para a saída dos automóveis, os porteiros abrem as portas e trocam de turno nos mesmos horários. Para cada possível interrupção já há uma rotina de normalização pronta: serviço de manutenção de elevadores, substitutos dos porteiros, sempre no sentido de retomar a repetição.

Biologicamente também adotamos rotinas, repetição de ações, que favorecem a nossa sobrevivência. Respiração, alimentação e horas de sono se repetem, momento após momento, dia após dia. Rotinas que, se seguidas em padrões rígidos, são melhor assimiladas pelo nosso organismo, o qual, comprovadamente, adapta-se melhor e se mantém mais saudável com a repetição de horários e tipos de alimentação, de horários para dormir e para acordar.

O pensamento se movimenta de modo análogo.

A partir de um começo pensado com justificativas lógicas, o ato de pensar se coloca em movimento. A cada pequeno deslocamento, estimulado pela percepção, o ato de pensar pressupõe o passo inicial anterior que o fundamenta e lhe garante sentido. A cada novo movimento, repete-se a mesma situação: volta-se ao ponto de partida, agrega-se sentido e um novo círculo do entendimento se fecha.

A busca incessante do sentido está, portanto, na base da repetição descrita. Ela se impõe como razão necessária e insuperável para que, em termos bastante gerais, o sujeito possa compreender.

Já a autorreferência se apresenta como epifenômeno do movimento de repetição. A cada repetição, a cada busca do ponto de partida, o pensamento termina por reconhecer-se a si como o mesmo, sempre o mesmo em momentos diferentes. Permite, assim, que se diferencie do mundo enquanto ente, enquanto ser que não se dilui no mundo que o cerca. E este é o contraponto da padronização anterior: a autorreferência torna possível pensar a diferença. O movimento se repete para se diferenciar mais adiante.

Esse epifenômeno decorrente de um constante e repetitivo movimento de retorno e avanço em torno de um ponto de partida do ato de pensar, é o que propicia outras condições essenciais para a existência. A formação da memória, a autoidentificação, a linguagem e a comunicação são exemplos.

As falhas desse movimento, quando há quebra do padrão estabelecido, dão causa às distorções dos demais elementos. A memória de certos eventos desaparece na medida em que eles não foram identificados corretamente e atribuídos ao sujeito que pensa. E assim por diante.

E o que seria conatural ao pensamento, em resposta ao questionamento do primeiro ensaio? Conaturais são as estruturas por ele reconhecidas no movimento de repetição. A autorreferência não está na linha de repetição de estruturas, mas decorre dela, é um epifenômeno do padrão criado. Por isso que ela não é naturalmente reconhecida, enquanto objeto da percepção, como estrutura válida pelo pensamento, e tende a ser identificada como uma contradição.

Como pode soar tão estranho um ensaio como este, sobre como alguém percebe as suas próprias estruturas mentais funcionando? Primeiro, as limitações da linguagem certamente não alcançam a complexidade inerente àquelas estruturas. Segundo, paradoxalmente, o movimento de repetição e autorreferencial do pensamento não consegue apreender a si mesmo, com precisão.

Portanto, há uma forte relação entre o movimento do ato de pensar e a busca de sentido. Esta faz com que o pensamento se volte, constantemente, para o seu ponto referencial inicial e, dessa forma, crie uma infinita repetição de estruturas. Essas estruturas alternam resultados de padronização e diferenciação, isto é, ao mesmo tempo em que inserem os dados da percepção em padrões que se tornam compreensíveis, diferenciam os vários componentes do mundo e suas manifestações. Desse movimento resulta um epifenômeno de natureza autorreferencial, no qual o pensamento se identifica como o mesmo em diferentes momentos, o que se poderia chamar de consciência. Repetir, padronizar, diferenciar.

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