terça-feira, 30 de novembro de 2010

III - Percepção consciente e ação humana (final)

Parte II – A percepção pura e a memória

Se está correta a lei bergsoniana de que percepção e ação estão relacionadas de modo que, a primeira dispõe do espaço na exata medida em que a segunda dispõe do tempo, o passo seguinte da análise do corpo será a de investigar como é gerada a consciência, ou como a percepção adquire a particular característica de ser consciente.

Não é possível identificar a percepção consciente sem analisar as noções de percepção pura, discernimento e memória.

Preliminarmente, é preciso registrar qual a importância do sistema nervoso e dos órgãos dos sentidos na percepção, para Bergson: é indispensável, a percepção da matéria sem os órgãos dos sentidos é praticamente impossível, não serviria para nada (BERGSON, 2010a, p. 43).

A percepção pura é uma hipótese criada por Bergson para entender a consciência. Ela é, portanto, mais de direito que de fato, uma parte da percepção inteira.

A percepção na sua integralidade está impregnada de lembranças, de conteúdos da memória. Os dados presentes dos órgãos dos sentidos são misturados sempre com lembranças. As lembranças entram numa espécie de disputa de espaço com os elementos próprios da percepção, fazendo com esses dados sejam diluídos numa base de experiências anteriores. Há, inclusive, um deslocamento das percepções reais pelos conteúdos de memória, o que pode resultar em ilusões, ou considerar imagens próprias de lembranças como se resultassem de uma percepção atual.

Para explicar a percepção consciente, Bergson sugere que se considere possível separar da percepção integral tudo aquilo que seja lembrança, conteúdo da memória, restando assim apenas o que a matéria, os pontos no espaço que estão em contato com o nosso corpo, nos oferecem como visão imediata. Esta é a chamada percepção pura.

A percepção purificada de qualquer conteúdo da memória é a representação que fazemos do mundo material. Entre presença e representação há diferença, que poderia ser interpretada como um acréscimo ou um decréscimo. Na primeira hipótese, a representação estaria envolvida em algo misterioso, inexplicável. Tal obstáculo seria superado na segunda, em que a representação é menos do que a imagem é em si.

Bergson afirma, portanto, que a representação das imagens é, efetivamente, a sua conversão em algo de menor conteúdo, no qual certos pontos são obscurecidos, diminuindo a sua extensão (BERGSON, 2010a, p. 31).

Os pontos suprimidos das imagens são aqueles que as relacionam de modo solidário com outras imagens. O universo é amplo demais para que a percepção consciente o capte de modo integral. Por isso, há um direcionamento para pontos essenciais que captam apenas o invólucro.

Esse direcionamento obedece a um critério de ação, de influência. A percepção consciente isola os pontos em que a ação do corpo é possível.

A percepção é comparável ao fenômeno da reflexão dos raios de luz, que passam de um meio a outro mudando de direção. Em alguns pontos não há reflexão e mudança de direção, mas refração pura e simples. Os raios não passam pelo meio. Na percepção ocorre algo semelhante no que diz respeito às imagens que se relacionam ao nosso corpo e a seus centros de ação. Aqueles pontos da imagem que efetivamente interessam ao corpo pelo critério da atividade não o atravessam, mas são refletidos de volta ao objeto da percepção, como num efeito de miragem.

É nesse sentido que Bergson afirma ser a representação das coisas a medida da atividade do nosso corpo sobre elas (BERGSON, 2010a, p. 35). E essa medida, que resulta na escolha de pontos essenciais das imagens e numa segunda imagem menor que a do mundo material, é o que conhecemos por discernimento.

A percepção consciente, ou consciência, é necessariamente pobre. Ela não é uma fotografia da realidade, é muito menos que isso, é apenas um fantasma da matéria ou dos átomos que a compõem. Entre o ser e o ser percebido há um intervalo, maior ou menor, em que uma série de qualidades da matéria em si foi desconsiderada. Mas é preciso considerar que há uma complementaridade entre ambos – o que falta à matéria percebida continua lá, na matéria em si.

O mecanismo da percepção, no entanto, está desenhado. Imagens existem no exterior do nosso corpo que alcançam os órgãos dos sentidos, cuja influência é levada por nervos até o cérebro na forma de um movimento que vai do mundo externo para o interno. O cérebro comandará por fim, como uma central telefônica, a ação voluntária decorrente.

Retomando a importância dos órgãos dos sentidos para a percepção, Bergson formula a hipótese em que os nervos sensitivos são cortados parcial ou totalmente (BERGSON, 2010a, p. 44).

A partir do corte desses nervos, o prejuízo imediato para o nosso corpo ocorre sobre o discernimento, responsável pela diferença entre o ser e o ser percebido. Os movimentos do corpo continuariam possíveis, porém não haveria mais como coordená-los. A atividade do nosso corpo estaria, desse modo, muito diminuída, como no caso da perda da visão. Sem as impressões visuais, as ações continuam virtualmente possíveis, mas novos arranjos teriam que ser feitos no âmbito cerebral para compensar essa perda de atividade.

Como se forma a representação?

Ela se forma na infância, a partir de sucessivas induções. Inicialmente ela é impessoal para depois tomar o nosso corpo como centro e se tornar a nossa representação. O nosso corpo se desloca no espaço e permanece sempre invariável, enquanto que as demais imagens variam. Assim, pois, é por indução que se forma o centro corporal de referência para o qual convergem todas as outras imagens.

A percepção em estado puro, do mesmo modo, não vai do nosso corpo aos outros corpos. Ela está inserida num conjunto dos outros corpos; aos poucos ela vai se contraindo e limitando e adota o nosso corpo como centro. Ela é levada a essa centralização pela experiência: o nosso corpo tem a faculdade de efetuar ações e experimentar afecções e ele ocupa sempre o centro da representação. Essa experiência constante faz com que as outras imagens sejam, paulatinamente, organizadas pela percepção em torno do nosso centro corporal a partir de um critério de ação que este pode lhes submeter. A imagem interior dessa imagem privilegiada também é por nós percebida, diferente das outras das quais se conhece apenas uma película superficial. Esta imagem privilegiada é o centro do nosso universo, a base da nossa personalidade, nosso corpo (BERGSON, 2010a, p. 64).

A inversão bergsoniana, portanto, parte da ação e não da afecção para explicar a relação entre as imagens e as ideias, ou o ser e o ser percebido. Parte do nosso corpo e da sua potencialidade de operar mudanças no mundo exterior que o cerca. Desde logo, Bergson insere o corpo no conjunto de imagens extensas, no mundo objetivo, diferente da Psicologia tradicional que iniciaria diretamente pela análise da subjetividade.

Inserido nesse universo material, nosso corpo percebe centros de indeterminação próprios da vida. As ações são irradiadas desses centros a partir do movimento ou da influência das imagens umas sobre as outras. A matéria viva primitiva realiza essa função quando se alimenta ou se repara. Já as formas de vida mais sofisticadas dividem essas funções em órgãos diferentes, destinando a primeira para os órgãos de nutrição e a segunda para o sistema nervoso, cuja função específica é agir. Os elementos nervosos ainda se dividem em extremidades, uma delas captando impressões exteriores, a outra efetuando movimentos. No exemplo da visão, os bastonetes e cones recolhem impressões e estímulos que serão transformados ou direcionados para movimentos específicos. A percepção nasce da mesma causa que deu origem ao sistema nervoso: ela exprime e mede a capacidade de agir do ser vivo, a indeterminação do movimento ou da ação que seguirá o estímulo recolhido (BERGSON, 2010a, p. 66/67).

A percepção em estado puro, portanto, faz parte das coisas. Ela não é produzida pelo cérebro, nem um fenômeno independente de qualquer experiência. A percepção em estado puro é o que de mais objetivo se pode imaginar no contexto da relação entre sujeito e mundo. E a sensação não surge da consciência, ela coincide com as modificações necessárias que sofre a particular imagem do nosso corpo.

E a memória, como é entendida a partir da hipótese da percepção pura? Ela é o fio condutor de uma série de visões instantâneas que integra essa percepção pura mais voltada para as coisas do que para nós.

A memória, enquanto sobrevivência de imagens passadas, está sempre se misturando com as imagens da percepção presente, podendo até mesmo substituí-las. Nossas percepções, em outras palavras, estão impregnadas de lembranças. A memória intercala o passado no presente. E é ela que dá o caráter subjetivo da percepção.

Segundo Bergson, o erro causador de dificuldades de compreensão desses fenômenos é considerar que entre percepção pura e lembrança há apenas uma diferença de grau, e não de natureza (BERGSON, 2010a, p.70). O papel do Psicólogo seria, nesse sentido, separar justamente essas duas situações. Uma das dificuldades criadas por esse erro é considerar a memória algo que ela efetivamente não é, uma percepção mais fraca, o que permite também dizer que a percepção é um lembrança mais intensa.

Este é um erro da Psicologia que impede que se explique de modo adequado a memória, e acaba influenciando a Metafísica com suas concepções realista e idealista da matéria.

Enfim, o caráter subjetivo da percepção é dado pela memória e pelo tempo. O conjunto de lembranças da minha memória se associa com a percepção pura e costura as diferentes e instantâneas imagens que se sucedem no devir. O caráter de continuidade é oferecido pela memória, a qual é representativa do tempo – ela contrai o presente em momentos do passado, em lembranças que são, posteriormente, associadas com os novos resultados da percepção e das sensações, que serão temporalizadas.

Considerações finais

O primeiro capítulo de “Matéria e Memória”, sobre o papel do corpo, é uma introdução ao tema maior de Bergson nesta obra, a memória, que é tratada nos capítulos centrais que seguem.

O corpo é analisado como o grande instrumento da ação, do movimento. Ao dispor da percepção, o corpo se volta para o universo, para os objetos materiais que o cercam na forma de imagens, de modo a se relacionar com eles por um critério de movimento. Os objetos externos transmitem movimentos ao corpo e este reage.

A percepção consciente é uma característica própria de organismos vivos mais avançados, providos de sistema nervoso central. Ela depende intrinsecamente dos órgãos dos sentidos. Também ela permite que o nosso corpo aumente os pontos de contato e de relação com o mundo exterior, ampliando o horizonte e o espaço diante de nós.

Diferente do que ocorre em organismos primitivos, a ação humana não é uma mera reação táctil, ela é caracteristicamente indeterminada. Antes do contato direto, a percepção consciente já projeta ações virtuais possíveis e aqui se identifica um primeiro indício de liberdade.

A percepção lato sensu, num segundo momento, deve ser analisada nos seus aspectos constituintes. Enquanto percepção consciente, ela está impregnada de lembranças, de conteúdo da memória.

É a memória que dá a característica de consciente à percepção. A memória representa o passado e é o resultado das experiências anteriores, as quais, pela indução, tornaram o nosso corpo o centro e a referência enquanto situação no mundo.

Nosso corpo é uma imagem entre muitas outras, com que ele se relaciona pelo critério do movimento. Ao se firmar como centro referencial, tal experiência induz a consciência ou a percepção consciente.

Despojada da memória, a percepção pura é mero presente. O presente é constituído por infinitos pontos que se sucedem espacialmente. Somente com a inserção do tempo, sob o signo da memória e da experiência do passado, que esses pontos aderem ao nosso corpo e fundam a noção de consciência.

E aqui retomamos à frase fundamental de Bergson: a percepção dispõe do espaço na exata proporção que a ação dispõe do tempo.

Bibliografia consultada

BERGSON, Henri. Matière et Mémoire: essai sur la relation du corps à l’esprit. Le Choc Bergson. Édition critique. 8ª edição, Paris: PUF, 2010.

_______________. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução Paulo Neves. 4ª edição, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010a.

________________. Memória e Vida; textos escolhidos por Gilles Deleuze. Tradução Claudia Berliner. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2006.

DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução Luiz b. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 1999.

RIDAU, Émile. Les rapports de la matière et de l’esprit dans le bergsonisme. Paris: Librairie Félix Alcan, 1932.

RIQUIER, Camille. Arquéologie de Bergson. Temps et métaphiysique. Paris: PUF, 2009.

RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Livro Quarto. Tradução de Brenno Silveira. 3ª edição, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.

VIEILLARD-BARON, Jean-Louis. Compreender Bergson. Tradução de Maria de Almeida Campos. Petrópolis: Vozes, 2007.

WORMS, Frédéric. Introduction à Matière et mémoire de Bergson. Paris: PUF, 1997.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

II - Percepção consciente e ação humana

PARTE I – A percepção e o espaço

Mesmo que “Matéria e Memória” se proponha a ser, essencialmente, mais uma obra cujo objetivo é analisar as relações entre corpo e espírito, o corpo e a alma, ou ainda entre o espírito e a matéria, como o subtítulo já antecipa, Bergson não apenas retoma e reafirma o dualismo clássico, mas inova o modo de apresentá-lo.

Inova o modo de apresentar o dualismo, porque utiliza conceitos novos, como o de imagem para se referir à matéria. Inova quando valoriza o senso comum no modo como esse olha a matéria, assim como quando utiliza a função psicológica da memória como ponto de referência ou exemplo para explicar as relações entre espírito e matéria.

Bergson indica desde logo, no prefácio, quais são os princípios que o guiarão em “Matéria e Memória”.

Primeiro, a análise psicológica inerente à investigação do Ensaio será pautada por um caráter utilitário das funções mentais, as quais estão essencialmente voltadas para a ação. Por que isso? Porque a Psicologia, segundo Bergson, tem por objeto o estudo do espírito humano enquanto este funciona utilmente na prática, sendo que a Metafísica dispõe do espírito humano já desembaraçado da ação e se assumindo como pura energia criadora (BERGSON, 2010a, p. 9).

Segundo, que os hábitos contraídos na ação humana, quando transpostos à esfera da especulação, criam problemas artificiais ou não-naturais que são objetos da Metafísica.

O papel do corpo propriamente dito é descrito a partir da análise das noções de consciência, percepção e ação.

A realidade imediata captada pelos sentidos, abstraindo-se de qualquer teoria realista ou idealista, é formada por imagens. Dentre essas imagens a mais evidente e importante, aquela que prevalece, é a do nosso próprio corpo. Este é, portanto, o ponto de partida de Bergson na análise da matéria em sua relação com o espírito.

Ao nosso corpo cabe uma função que é a de selecionar imagens para a representação. O cérebro tem um papel importante nessa atividade, todavia não é ele que produz as imagens do universo. Ele próprio é uma imagem e, portanto, segundo Bergson, seria absurdo afirmar que a representação do universo inteiro estaria nele implicada (BERGSON, 2010a, p. 13).

Qual a relação entre a imagem do nosso corpo e as imagens que lhe são exteriores? É uma relação de movimento. As imagens externas ao nosso corpo lhe transmitem movimento e este, por sua vez, restitui movimento àquelas imagens. O nosso corpo é, portanto, um centro de ação ou, simplesmente, um objeto destinado a mover objetos (BERGSON, 2010a, p. 14).

É possível afirmar, portanto, que a realidade assumida por Bergson no capítulo inicial de “Matéria e Memória” é a de um conjunto de imagens percebido pelos órgãos do sentido do nosso corpo, tal como faz o senso comum. A existência das imagens não depende da atividade cerebral. Tal como o próprio cérebro, são imagens com existência assegurada por si mesmas e que estão submetidas às leis da natureza. Matéria e imagem, enfim, se equivalem.

O movimento é o que produz a dinâmica entre as imagens. A realidade não é formada por imagens estáticas, mas imagens que se relacionam com trocas constantes de movimento. O nosso corpo se relaciona com outras imagens de diferentes maneiras, de acordo com a distância, com o espaço que as separa dele. Perceber essas imagens significa, assim, a ação potencial ou possível do nosso corpo sobre as mesmas.

Em termos bergsonianos, os objetos que cercam meu corpo refletem a ação possível do meu corpo sobre eles (BERGSON, 2010a, p. 16).

Ação e percepção estão intrinsecamente relacionadas. A afirmação é demonstrada a partir de uma modificação hipotética do nosso corpo, na qual são seccionados os nervos aferentes do sistema cérebro-espinhal, responsáveis pela percepção. O mundo e o restante do nosso corpo permaneceriam iguais e a mudança operada teria pouca significação. Entretanto, toda a nossa percepção despareceria, o que significa que o cérebro e a medula não poderiam mais receber e nem transmitir movimentos. Os nervos seccionados eram os transmissores desses movimentos internos e, portanto, eram eles que permitiam a ação do corpo.

A percepção é, desse modo, o âmbito no qual são projetadas as nossas ações ou que contém virtualmente todas as nossas ações.

O aspecto paradoxal dessa situação hipotética é que uma mudança no mundo material – o ato de seccionar nervos do nosso corpo – causou uma mudança do que chamamos “nossa percepção”, o que leva Bergson a uma nova definição: matéria é o conjunto das imagens, e percepção da matéria são as essas mesmas imagens então relacionadas à ação possível de uma certa imagem determinada, nosso corpo (BERGSON, 2010a, p. 17).

As imagens são, então, classificadas em dois sistemas. Há um sistema de imagens o qual conhecemos simplesmente como universo. Neste sistema as imagens estão voltadas para si e não para o corpo, influenciando-se reciprocamente. Ao lado deste está outro sistema de imagens denominado nossa percepção do universo, no qual o corpo é a referência mais importante. Qualquer movimento desse corpo faz com que tudo mude nesse sistema, como num caleidoscópio que está sendo girado. (BERGSON, 2010a, p. 20).

Uma mesma imagem pode estar, simultaneamente, em ambos os sistemas – um regulado pela ciência, o outro regulado pela consciência, no qual todas as imagens se regulam a partir de uma única, o nosso corpo.

Realismo e idealismo são posicionamentos que nascem das relações possíveis entre esses dois sistemas. A pergunta que se faz o realista e o idealista é a seguinte: o que é o universo?

O primeiro dirá que se trata de um conjunto de imagens regidas por leis da natureza, de caráter necessário e imutável. Mas não poderá negar que existem percepções, ou um sistema de imagens em que o corpo é a referência e todas as imagens se orientam a partir dessa imagem dita central. O segundo, o idealista, partirá desse segundo sistema para derivar o anterior, do universo propriamente dito. Ambos não negam a existência dos dois sistemas, apenas invertem a dedução de um e outro.

O tempo se relaciona de modo diferente com os dois sistemas. Enquanto que o sistema do universo propriamente dito é, exclusivamente, o momento presente, o universo percebido é o que possibilita a noção do devir, do tempo passado, presente e futuro, da sucessão de momentos. Sem o universo percebido não há temporalidade, há apenas um estático presente.

A matéria é imagem. O universo é constituído por um conjunto de imagens. O nosso corpo é uma dessas imagens. Estas imagens relacionam-se entre si.

Qual é o critério para que essas imagens se relacionem? É o movimento. As imagens se relacionam entre si com troca de movimentos, umas influenciando as outras. Os movimentos do nosso corpo são as ações.

O que é a percepção do nosso corpo? É a ação potencial que ele exerce sobre as outras imagens. Essa ação varia de acordo com a distância, o espaço, existente entre as imagens e o nosso corpo.

Portanto, a realidade é uma dinâmica de imagens dentre as quais há uma de especial importância, que é o nosso corpo, cuja percepção é a razão de ser de um duplo nível do real: o universo ou o sistema de imagens que não possui centro e é regido por leis naturais imutáveis, e o universo percebido, ou o sistema das mesmas imagens agora estritamente relacionadas a uma imagem central, o nosso corpo.

Segundo Bertrand Russell, um dos críticos mais conhecidos das teses bergsonianas, há aí uma confusão evidente entre o ato de conhecer e o objeto conhecido e que vicia o entendimento do que Bergson está propondo com a sua Filosofia. A matéria e o ato de perceber a matéria consistem, erroneamente, para Bergson das mesmas coisas (RUSSELL, 1969, p. 373).

Ambos os sistemas de imagens, ou níveis de realidade – um objetivo, outro subjetivo – são permeados pela noção de tempo, necessariamente. Enquanto o universo objetivo está vinculado unicamente ao presente, o universo percebido se vale do passado, do presente e do futuro e garante uma experiência mais ampla, de continuidade.

Continuidade e temporalidade são, enfim, noções coextensivas. Não há continuidade sem temporalidade ampla, sem passado, presente e futuro. E não há temporalidade ampla da qual não decorra continuidade.

Ainda, outra observação possível de ser feita sobre o texto bergsoniano é que universo e universo percebido são experiências que não se excluem mutuamente. Não é impositivo que se opte por uma ou outra experiência, elas são complementares e não excludentes.

E aqui retornamos ao prefácio. Bergson se propôs a analisar a matéria neste primeiro capítulo antes da dissociação realizada pelas teses rivais do realismo e idealismo, antes de pensar como Descartes e como Berkeley. A dificuldade de realizar semelhante análise é grande depois que os filósofos separaram realidade e aparência.

Segundo Bergson, se na história do pensamento a ênfase de análise da matéria tivesse sido pelo caminho do meio entre as teses de Descartes e Berkeley, a Metafísica não teria sido sacrificada à Física. O senso comum teria prevalecido e as críticas de Kant, por exemplo, não teriam sido necessárias (BERGSON, 2010a, p. 3 e 4).

Para superar as dificuldades teóricas do realismo e do idealismo, Bergson encontra no modo como se entende a percepção um elemento fundamental comum a ambos. A percepção tem uma natureza especulativa e é voltada para o conhecimento puro. É contra esta noção que Bergson se volta, por considerar que perceber não é conhecer (BERGSON, 2010a, p. 24).

A percepção não está voltada para o conhecimento puro. Ela é, em verdade, um sistema de reação do corpo aos movimentos externos que lhe são transmitidos pelos objetos que o cercam.

O sistema nervoso é a condição de possibilidade da percepção e o seu maior ou menor desenvolvimento fará com que ela seja mais ou menos apurada. Para demonstrá-lo, Bergson descreve o progresso da percepção externa a partir dos organismos primitivos até os atuais vertebrados superiores.

Os organismos de vida primitivos, como a ameba, reagiam de modo mecânico aos estímulos exteriores. A evolução fez com que organismos vivos mais complexos fossem gerados, nos quais as funções fisiológicas passaram a ser organizadas em diferentes sistemas – de um lado, funções de reação mecânica, de outro, funções vinculadas a um sistema nervoso, não propriamente mecânico. De um lado estão as ações reflexas, de outro estão as ações voluntárias.

Esses dois sistemas se valem de um órgão principal. O sistema nervoso é regido pelo cérebro e o sistema de ações reflexas, pela medula. Ambos são responsáveis pelos movimentos do corpo. Não há, entretanto, uma diferença de natureza entre os dois sistemas. Há uma diferença de complexidade.

O cérebro funciona como uma espécie de “central telefônica”, segundo Bergson. Ele não cria representações nem imagens. O cérebro tem seu papel vinculado à transmissão e repartição dos movimentos do corpo. Ele é um receptor de excitações.

Recebida a excitação, o cérebro faz uma distribuição do movimento. Ou ele o distribui para um órgão de reação específico, ou ele o disponibiliza para a totalidade das vias de movimento para analisar a melhor opção.

Qual a consequência de uma crescente complexidade desse sistema nervoso conduzido pela central telefônica que é o cérebro? Há uma relação direta entre a maior complexidade do sistema e uma percepção cada vez mais apurada.

Essa percepção aperfeiçoada aumenta distâncias.

Os organismos primitivos, que eram desprovidos de sistema nervoso, somente reagiam a estímulos externos depois que eram fisicamente tocados. A percepção era uma mera reação mecânica. Os organismos complexos, que possuem sistema nervoso, são providos de órgãos dos sentidos e é com eles que a percepção se antecipa à reação táctil. Ao invés de aguardar o toque para reagir, a percepção aumenta os pontos no espaço com os quais entra em relação e, desta forma, mecanismos mais complexos de ação são colocados em funcionamento.

Segundo Bergson, a perfeição crescente da nossa percepção se dá na mesma proporção em que ela torna cada vez menos necessária a ação. Dessa forma, é possível afirmar que a percepção está voltada para a ação, e não para o conhecimento puro como se supunha até então (BERGSON, 2010a, p. 27).

A percepção não é criadora de realidade, ela é um instrumento do nosso corpo que comanda e administra a nossa ação. Quanto mais imediata deve ser a resposta aos movimentos recebidos, mais a ação se assemelha a impulso mecânico. Por outro lado, quanto mais essa ação se torna incerta ou indeterminada, mais a percepção se parece com um modo de organização de complexidade crescente que permite ao ser vivo avaliar qual seria a melhor ou mais adequada ação a ser adotada.

Da maior amplitude da percepção decorre uma maior indeterminação da ação. Quanto mais pontos de contato no espaço estiverem em relação com o ser vivo, maior a sua independência, maior a sua liberdade de ação. E liberdade aqui é tão somente a medida do tempo que a ação dispõe: quanto mais tempo, mais livre ou indeterminada é a ação, cujo contraponto é a ação imediata e mecânica, de natureza estritamente impulsiva.

Tendo estas considerações por fundamento, Bergson enuncia o que é uma lei natural explicativa do modo como a percepção e a ação se relacionam com o tempo e o espaço: a percepção dispõe do espaço na exata proporção em que a ação dispõe do tempo (BERGSON, 2010a, p. 29).

Referências:
 
BERGSON, Henri. Matière et Mémoire: essai sur la relation du corps à l’esprit. Le Choc Bergson. Édition critique. 8ª edição, Paris: PUF, 2010.
 
_______________. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução Paulo Neves. 4ª edição, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010a.

RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Livro Quarto. Tradução de Brenno Silveira. 3ª edição, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

I - Percepção consciente e ação humana *

Análise do primeiro capítulo de Matéria e Memória, de Henri Bergson

Introdução

“Matéria e Memória” foi escrito em 1896. É a segunda obra de Henri Bergson, antecedida pelo “Ensaio sobre os dados imediatos da consciência”, de 1889.

Ao tempo da publicação, Bergson tinha 37 anos e ensinava Filosofia no Liceu Henri-IV de Paris. Seu nome ainda não era reconhecido entre os colegas de trabalho. “Matéria e Memória” é considerado um ponto de transição no caminho que levou o autor à recepção do grande público, que ocorre com a sua nomeação para o Collège de France, em 1900, e definitivamente com a publicação de “Evolução Criadora”, em 1907 (WORMS, 1997, p. 3).

O tema tratado por Bergson nesta obra é clássico: o problema da união da alma e do corpo, o dualismo representado em grandes linhas pela relação entre o universo e a subjetividade.

O título da obra enuncia um dualismo que contrapõe a realidade da matéria à uma função psicológica, a memória. Este é o primeiro aspecto surpreendente a ser observado, já que, tradicionalmente, a contraposição conhecida dava-se na oposição entre matéria e espírito.

O subtítulo, “Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito”, retoma o dualismo do título e cria uma espécie de cruzamento sintático ou efeito espelho: a matéria do título encarna no corpo do subtítulo, enquanto a memória é assimilada pela realidade do espírito (WORMS, 1997, p. 2).

A obra é estruturada em quatro capítulos:

I – Da seleção das imagens para a representação. O papel do corpo;

II – Do reconhecimento das imagens. A memória e o cérebro;

III – Da sobrevivência das imagens. A memória e o espírito;

IV – Da delimitação e da fixação das imagens. Percepção e matéria. Alma e corpo.

A publicação de “Matéria e Memória” ocorre num período de efervescência da Psicologia na França. Um dos temas do momento era, justamente, a memória. Bergson escreve seu texto dentro desse contexto muito específico e suas ideias são, de um certo modo, uma reação à outra obra publicada no mesmo período, em 1881, Maladies de la mémoire, de Théodule Ribot, autor citado em várias passagens do texto.

Ribot era um filósofo amigo e contemporâneo de Bergson. É considerado o fundador da Psicologia científica francesa. Foi o responsável por incluir a Psicologia nos estudos universitários na França e os seus estudos sobre a memória são especialmente célebres. Bergson publicou, antes de 1896, partes de “Matéria e Memória” mais voltadas para Psicologia na Revue Philosophique de La France et de l’Étranger, que era dirigida à época pelo mesmo T. Ribot.

Entretanto, a noção de memória de Ribot contrasta muito com aquela defendida por Bergson. Ribot defende a ideia segundo a qual as lembranças estão localizadas em alguma parte do cérebro, sendo, portanto, entes materiais. Diferente de Bergson, que atribui à memória uma característica estritamente imaterial e considera o cérebro uma central telefônica que orienta a memória para as ações. O conjunto das lembranças, a memória, é inserido no presente com vistas exclusivamente à ação do corpo. Nem mesmo lesões no cérebro são capazes de apagar as memórias, mas apenas dificultar ou inviabilizar as ações ou movimentos do corpo (LE CHOC BERGSON, 2010, pp. 290, 291 e 346).

Ribot, de modo totalmente diferente, considera que os elementos espirituais podem ser reduzidos à matéria. Os sentimentos são efeitos da atividade fisiológica, decorrem de reações químicas. E a sua obra sobre as doenças da memória é uma referência importante da Psicologia, ao menos no período entre a sua publicação (1881) e o início da Segunda Guerra Mundial. Ele se vale em parte das observações da Medicina e da Psiquiatria para formular suas teses sobre a memória, analisando-a a partir das doenças que a afetam e a dissolvem.

Bergson faz constantes referências e críticas em seu texto aos estudos da Psicologia do seu tempo e, quando o faz, está voltado em regra aos estudos de Ribot sobre a memória.

Neste trabalho faremos a análise do primeiro capítulo de “Matéria e Memória”, destacando para tanto uma frase do texto que nos pareceu a melhor síntese do mesmo: A percepção dispõe do espaço na exata proporção que a ação dispõe do tempo (BERGSON, 2010a, p. 29).

Na primeira parte analisaremos a noção de percepção vinculada ao espaço, sendo que na segunda a percepção será cindida e separada da memória.


Referências:


BERGSON, Henri. Matière et Mémoire: essai sur la relation du corps à l’esprit. Le Choc Bergson. Édition critique. 8ª edição, Paris: PUF, 2010.


_______________. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução Paulo Neves. 4ª edição, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010a.


WORMS, Frédéric. Introduction à Matière et mémoire de Bergson. Paris: PUF, 1997.

(continua na próxima postagem)
 
* trabalho apresentado no dia 24-11-2010, em conjunto com o colega ANDRÉ RODRIGO BOCHI, na Faculdade de Filosofia da PUC-RS, em História da Filosofia Contemporânea II, coordenada pelo Prof. André Brayner Farias.