terça-feira, 22 de junho de 2010

Freud e a hipótese do inconsciente psíquico

Marco Antonio Schmitt


INTRODUÇÃO

Sigmund Freud nasceu em 1856, filho de uma família judaica, em Freiberg, cidade inserida no então Império Austro-Húngaro e hoje pertencente ao território da República Tcheca. Estudou Medicina em Viena, na Áustria, onde foi laureado em 1881 (GAY, 1989, p. 22).

Freud era médico, sendo que seus estudos iniciais dirigiam-se à anatomia do cérebro e, mais adiante, passou a se dedicar ao estudo de doenças nervosas. Não tinha formação filosófica e algumas vezes chegou mesmo a demonstrar ojeriza ao discurso filosófico (BIRMAN, 2003, p. 9).

Mas é com a Psicanálise que Freud começa seu distanciamento da Medicina e sua aproximação da Filosofia.

A Psicanálise é criação de Freud, resultado direto do seu trabalho clínico com seus pacientes que sofriam de histeria (LIMA, 2001, p. 22.). É o resultado de experiências no campo clínico, a partir do método científico.

Como ramo do saber a Psicanálise pode ser definida como um “método de investigação que consiste essencialmente em evidenciar o significado inconsciente das palavras, das ações, das produções imaginárias - sonhos, fantasias, delírios - de um sujeito” (LAPLANCHE e PONTALIS, 1998, p. 384).

O método psicanalítico de Freud não subsiste, portanto, sem a existência do inconsciente, um registro psíquico além da consciência.

Inconsciente é, também, uma noção tópica, no sentido de teoria dos “lugares”, do grego topoi. De acordo com essa noção, o aparelho psíquico é formado por sistemas com características diversas, dispostos numa ordem um em relação aos outros. Metaforicamente, esses sistemas podem ser considerados como “lugares”.

Freud construiu a sua primeira tópica do aparelho psíquico distinguindo três sistemas, o inconsciente, o pré-consciente e o consciente. Há uma segunda tópica do pensamento freudiano que sucede a primeira, na qual diferencia-se o Id, o Ego e o Super-ego. Há semelhanças e dessemelhanças com a primeira tópica, mas que não cabem ser analisadas no presente trabalho. O importante é não confundir ambas as noções.

O sistema consciente, nessa visão tópica, é o sistema de percepção-consciência, localizando-se na periferia do aparelho psíquico. Ele recebe as informações do exterior, captadas pelos sentidos, e do interior, as sensações de prazer e desprazer e as informações da memória.

O sistema inconsciente é constituído por conteúdos recalcados ou reprimidos aos quais foi recusado o acesso ao sistema pré-consciente. Os conteúdos ali encontrados, de modo geral, são representantes de pulsões, de instintos, desejos de infância. Estão inacessíveis à consciência por força de uma censura, que impede sua evocação.

O sistema pré-consciente está, topicamente, entre os dois sistemas anteriores. Do inconsciente ele está separado por uma censura que impede a passagem do conteúdo inconsciente para a pré-consciência. Entre ele e o consciente há uma segunda censura, porém, menos rigorosa. O conteúdo do pré-consciente é formado por conhecimentos e recordações não atualizadas, no sentido de não estarem conscientes a todo momento, mas que podem ser evocados quando necessário. Diferente do conteúdo inconsciente, o qual está confinado pela censura.

Os três sistemas, numa visão dinâmica, estão em conflito entre si. O inconsciente empreende um insistente movimento de retorno, para ter acesso à consciência e à ação, e o pré-consciente / consciente se opõe a isso mediante a repressão, o recalque.

Essa dinâmica do conflito ainda se manifesta por formações do inconsciente, por sintomas diversos, como sonhos, atos falhos e lapsos.

E a diferença fundamental entre inconsciente e pré-consciente estaria na vontade: seria possível tornar consciente imediatamente qualquer elemento do pré-consciente, mas não do inconsciente.

O tema do presente ensaio é a hipótese do inconsciente psíquico, tal como Freud a formulou no ensaio “O Inconsciente” (FREUD, 1969).

Tal hipótese, de acordo com Freud, é necessária e legítima para explicar as lacunas da consciência. É uma hipótese hermenêutica para sonhos, atos falhos e as doenças mentais.

1 O INCONSCIENTE PSÍQUICO COMO HIPÓTESE NECESSÁRIA

Primeiro Freud apresenta os argumentos para que a hipótese seja necessária (FREUD, 1969, p. 82 e OS FILÓSOFOS, 2003, p. 273).

Ela é necessária pelo chamado princípio da continuidade psíquica. Segundo esse princípio, apenas o próprio aparelho psíquico deve explicar as suas próprias manifestações.

O sistema consciente não explica a totalidade dessas manifestações, tais como, por exemplo, os chamados atos falhos e os sonhos, no caso de pessoas sadias. Não são explicados, também, sintomas ou obsessões em pessoas doentes. Não há explicação para determinadas conclusões alcançadas sem se saber como.

Todas essas situações ficam inexplicáveis se não for interpolada a hipótese do inconsciente psíquico, que é a sua garantia de sentido.

O sentido desses atos depende de uma hipótese diversa de uma simples causa orgânica. Se os sonhos fossem o efeito de fenômenos orgânicos ou se as doenças mentais tivessem tão somente causas orgânicas, a hipótese do inconsciente psíquico de Freud não seria necessária, e nem mesmo legítima (OS FILÓSOFOS, 2003, p. 273).

Como é explicável o fato de se querer dizer determinada palavra e dizer-se outra? Como é explicável o fato de se pretender escrever certa palavra e se escrever outra? Qual é a causa desses atos falhos, desses lapsos? Não seria esse o resultado da contraposição de duas intenções diversas, uma das quais de natureza inconsciente?

O inconsciente tem um valor explicativo, quando se assume a decisão de que o aparelho psíquico e seu funcionamento devem ser explicados por ele mesmo.

E aquelas situações não explicadas fazem com que a pretensão de explicar tudo o que ocorre no aparelho psíquico a partir do sistema consciente é insustentável, tal como Freud enuncia:

Quando, ademais, disso resultar que a suposição da existência de um inconsciente nos possibilita a construção de uma norma bem-sucedida, através da qual podemos exercer uma influência efetiva sobre o curso dos processos conscientes, esse sucesso nos terá fornecido uma prova indiscutível da existência daquilo que havíamos suposto. Assim sendo, devemos adotar a posição segundo a qual o fato de exigir que tudo quanto acontece na mente deve também ser conhecido pela consciência, significa fazer uma reivindicação insustentável (FREUD, 1969, p. 82).

Ela é necessária, igualmente, para explicar nossas lembranças latentes, ocultas. Freud insiste na necessidade do inconsciente psíquico afirmando, ainda, que o conteúdo do sistema consciente, num momento qualquer, é muito pequeno. Como o conteúdo do aparelho psíquico é muito maior, constituído de lembranças das mais diversas espécies, conclui que a maior parte desse conteúdo deve permanecer, por longos períodos, em estado de latência, oculto, no inconsciente.

A objeção feita a Freud, e à qual ele mesmo responde no ensaio, quanto às lembranças ocultas, é no sentido de que essas já não seriam mais parte do sistema psíquico. As lembranças ocultas seriam, em refutação à idéia freudiana de estados psíquicos, estados físicos, orgânicos.

Tal idéia, como Freud já havia enunciado antes, está fundamentada na dita pretensão insustentável de que tudo o que é psíquico é necessariamente consciente.

Por que ela é insustentável? Porque ela desloca a questão da pesquisa psicológica sem oferecer uma compensação segura para isso em qualquer outro campo do conhecimento. A Medicina, segundo Freud, não tem condições de apresentar uma explicação orgânica suficientemente segura para refutar a hipótese do inconsciente. Então, por que abandonar desde agora a pesquisa psicológica? Vale transcrever o trecho correspondente:

A isso podemos responder que a equivalência convencional entre o psíquico e o consciente é totalmente inadequada. Ela rompe as continuidades psíquicas, mergulha-nos nas dificuldades insolúveis do paralelismo psicofísico, está sujeita à censura de, sem um motivo óbvio, superestimar o papel desempenhado pela consciência, forçando-nos prematuramente a abandonar o campo da pesquisa psicológica sem ser capaz de nos oferecer qualquer compensação de outros campos (FREUD, 1969, p. 83).

2 O INCONSCIENTE PSÍQUICO COMO HIPÓTESE LEGÍTIMA

Por que seria legítimo, de acordo com Freud, supor-se a existência de um inconsciente? Por uma razão aparentemente simples: essa suposição decorreria do mais habitual e geralmente aceito modo de pensar.

O que faz a consciência com as pessoas? Ela as faz conscientes, ou conhecedoras de seus próprios estados mentais.

E em relação às outras pessoas, como se sabe que elas também têm consciência? Diz Freud, essa é uma mera dedução fundamentada por analogia, a partir da observação que se faz a respeito das declarações e das ações das outras pessoas.

E qual a razão dessa dedução? Ela faz com que a conduta alheia se torne inteligível. Ou seja, supõe-se que os outros sejam iguais a nós pois assim eles se tornam inteligíveis.

Nas palavras do próprio Freud, “sem qualquer reflexão especial atribuímos a todos os demais a nossa própria constituição, e portanto também a nossa consciência, e que essa identificação é uma condição sine qua non para a nossa compreensão” (FREUD, 1969, p. 85).

A Psicanálise, quando defende a hipótese do inconsciente, quer que se faça o mesmo em relação a si mesmo. Ela quer que se diga:

[...] todos os atos e manifestações que noto em mim mesmo, e que não sei como ligar ao resto de minha vida mental, devem ser julgados como se pertencessem a outrem; devem ser explicados por uma vida mental atribuída a essa outra pessoa” (FREUD, 1969, p. 85).

Constatando-se, assim, a existência de atos e manifestações que são atribuíveis a outrem, está-se admitindo a existência de uma segunda consciência, um segundo “eu”, incontrolável, dentro de um mesmo sujeito.

Freud nega e argumenta contra a existência de uma segunda consciência, dizendo que não se trata disso, mas do inconsciente em si mesmo.

O inconsciente, como hipótese legítima, poderia, segundo Freud, representar uma extensão das correções feitas por Kant sobre a nossa percepção externa. Kant afirmava que as percepções são subjetivamente condicionadas e que elas nunca alcançarão a coisa em si. Mas também não deixarão de perceber algo.

Assim também a Psicanálise estaria advertindo: a percepção da nossa consciência não alcança os processos mentais inconscientes de maneira genuína. Todavia, de alguma maneira os avalia, por hipótese. Nas palavras de Freud:

A suposição psicanalítica a respeito da atividade mental inconsciente nos aparece, por um lado, como uma nova expansão de animismo primitivo, que nos fez ver cópias de nossa própria consciência em tudo o que nos cerca, e, por outro, como uma extensão das correções efetuadas por Kant em nossos conceitos sobre percepção externa. Assim como Kant nos advertiu para não desprezarmos o fato de que as nossas percepções estão subjetivamente condicionadas, não devendo ser consideradas como idênticas ao que, embora incognoscível, é percebido, assim também a psicanálise nos adverte para não estabelecermos uma equivalência entre as percepções adquiridas por meio da consciência e os processos mentais inconscientes que constituem seu objeto. Assim como o físico, o psíquico, na realidade, não é necessariamente o que nos parece ser. Teremos satisfação em saber, contudo, que a correção da percepção interna não oferecerá dificuldades tão grandes como a correção da percepção externa — que os objetos internos são menos incognoscíveis do que o mundo externo (FREUD, 1969, p. 87).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A hipótese do inconsciente formulada por Freud é uma necessária e legítima.

Necessária por força do princípio da continuidade psíquica, pois apenas o próprio aparelho psíquico pode explicar as suas manifestações. Para dar sentido a atos falhos e sonhos, por exemplo, é necessário recorrer à hipótese do inconsciente psíquico, já que diante do sistema consciente tratam-se de lacunas. É necessária, também, para explicar as nossas lembranças latentes.

É legítima, porque ela decorre de uma inferência muito comum ao nosso modo de pensar, o qual atribui aos outros a nossa própria constituição como requisito de inteligibilidade própria. Se há atos e manifestações que verificamos em nós mesmos, mas não os reconhecemos como resultado da nossa atividade psíquica, então eles devem pertencer a outra pessoa. E essa segunda personalidade é o inconsciente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIRMAN, Joel. Freud e a Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. (Coleção Passo a Passo).

FREUD, Sigmund. Metapsicologia. Rio de Janeiro: Imago, 1969. Livro 11 (Pequena Coleção das Obras de Freud).

GAY, Peter. Freud – Uma vida para o nosso tempo (trad. Denise Bottmann). São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

LIMA, Luiz Tenório Oliveira. Freud. São Paulo: Publifolha, 2001. (Coleção Folha Explica).

OS FILÓSOFOS Através dos Textos – de Platão a Sartre, Por um grupo de professores. 2ª edição, São Paulo: Paulus, 2003.

REALE, Giovanni e ANTISERI, Dante. História da Filosofia. 4ª edição, São Paulo: Paulus, 1991. Volume 3.

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