sexta-feira, 9 de julho de 2010

John Locke e os papagaios brasileiros do século XVII

Marco Antonio Schmitt

Identidade pessoal, consciência, sujeito, pessoa e ser humano são importantes noções para diferentes áreas do conhecimento. Os estudos da Filosofia foram, certamente, os primeiros a discuti-las. Mais à frente, a Psicologia se especializou e no seu campo próprio de estudo assimilou tais noções para aplicá-las também na área clínica. A identificação e a cura de patologias relacionadas à personalidade não podem delas prescindir. Também são importantes no Direito, como no caso da noção de sujeito para a definição das regras sobre responsabilidade.
Na Filosofia a identidade mereceu destaque na obra de John Locke, que escreveu sobre o tema em 1690, no seu “Ensaio sobre o Entendimento Humano”. O Ensaio não trata de forma exclusiva do tema da identidade pessoal, mas oferece uma importante contribuição para compreendê-la.
Locke diferencia as noções de homem e pessoa. Enquanto a primeira é relacionada apenas ao corpo como animal vivo, “pessoa” tem um grau de abstração maior e se refere ao ser racional e consciente da própria existência contínua.
A consciência contínua implica o ato de reconhecer para si os atos praticados anteriormente no tempo, o que faz com que a existência fique vinculada à temporalidade e não mais à essência. Dito de outro modo, a identidade passa a ser pensada enquanto reflexividade e memória e não mais como substância. A consciência volta-se sobre si mesma, o tempo todo, a cada instante, e faz desse continuum uma sucessão de memórias encadeadas de modo coerente e sempre atribuídas a uma mesma identidade.
Já a noção de homem não é construída a partir da consciência, nem da palavra que exterioriza o pensamento, nem é suficientemente descrita como ser pensante e racional, que é a definição clássica. O homem de Locke é um animal com uma certa forma corporal. Essa forma corporal humana é que determina o que é o homem. Mesmo que esse animal com a forma reconhecidamente humana não tenha mais razão que um gato ou um papagaio, ele ainda continuará sendo um homem. E o contrário, se um papagaio ou um gato filosofassem ou discorressem muito bem sobre determinado objeto, ainda sim continuariam sendo apenas um papagaio ou um gato muito esperto (LOCKE, Livro II, Cap. XXVII, § 8).
Para ilustrar o argumento, Locke apresenta a história do papagaio brasileiro do príncipe holandês Maurício de Nassau, contada a ele por um interlocutor e não diretamente pelo nobre senhor.
Segundo o relato, Maurício de Nassau, no período em que foi governador no Brasil, conhecera um velho papagaio que falava muito bem, respondia a todas as perguntas que lhe eram feitas de modo coerente e, aparentemente, tinha uma capacidade racional bastante sofisticada. Nas palavras de Locke, esse velho papagaio não falava a língua holandesa, mas a “língua brasileira”. Como Nassau não compreendia a língua do papagaio, fez-se acompanhar de dois intérpretes, um holandês que falava a “língua brasileira” e um brasileiro que falava a língua holandesa. Desse modo, o holandês pôde atestar com segurança a coerência do discurso da sábia ave.
Qual é o ponto de Locke nesta história?
Ele continua após o relato afirmando que ambos, o nobre holandês e o seu interlocutor, contavam a história e sempre atribuíam a capacidade excepcional de fala a um papagaio, e não a um homem. Tal observação foi o suficiente para Locke concluir que a definição de homem estava marcada pela forma humana de seu corpo. Portanto, a consciência de si, a expressão da racionalidade, o pensamento e a linguagem, se não estiverem associadas a um corpo humano, a criatura com todas essas capacidades, na definição de Locke, não será um homem.
Difícil concordar com Locke quando se tem como características mais marcantes da humanidade justamente aquelas de natureza intelectual. A identidade humana está tão marcada pelo pensamento e pela capacidade de transformar o mundo a partir das abstrações por ele criadas que a questão da forma não parece relevante.
Não se trata de confundir as noções que Locke quer diferenciar. O homem de Locke, do Ensaio, é marcado pelo aspecto biológico e por este se diferencia. Pouco importa que um asno, um dos animais mais presentes na história do homem, venha a proferir os mais belos discursos que já se ouviu: ele jamais será um homem e perecerá asno, pois a sua forma corporal não lembra a de um homem.
Mas não deveriam ser a linguagem e o discernimento os elementos diferenciadores do homem?
Não, estas são características atribuíveis a um constructo, uma obra do pensamento que é a noção de pessoa. Pensamento, linguagem, discernimento, reflexividade e consciência somente são possíveis enquanto reflexão de uma identidade. Não há tais elementos senão no pensamento que se volta sobre si mesmo e que reconhece a alteridade apenas de modo seletivo, ou seja, apenas reconhece a mesma reflexividade naqueles que lhe parecem semelhantes. Narcisicamente, o constructo que possibilita a identidade pessoal só vê o homem naquilo que com ele se parece.
E o papagaio de Nassau? E se ele tivesse recitado o poema de Camões? Não superaria ele o constructo? E se ele estivesse aqui hoje, operando um notebook e se comunicando com você usando uma identidade falsa? Ele continuaria um bípede emplumado. Sua forma é inadequada para uma pessoa.

Bibliografia indicada:
LOCKE, John. An Essay on Human Understanding, 1690.
SIMHA, André. A Consciência. Do Corpo ao Sujeito. Petrópolis: Vozes, 2009.

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