sexta-feira, 23 de julho de 2010

II - Pensar é pensar um começo

Marco Antonio Schmitt


A primeira vez que me deparei com a obra do Prof. Stein, intitulada “Pensar é pensar a diferença” (STEIN, E., Pensar é pensar a diferença – Filosofia e Conhecimento Empírico, Ijuí, Editora Unijui, 2002) tive a impressão que aquela pequena frase condensava uma série de conclusões importantes sobre o ato de pensar, mas certamente não abrangia a etapa verdadeiramente inicial do processo.

Para os fins deste ensaio, sem ignorar os estudos já realizados nesta área, considero que pensamento é um processo formado por incontáveis etapas, as quais não formam uma série própria e exclusivamente ordenada. São passos que se sucedem infinitamente, ocorrem de modo simples ou simultâneo e avaliam, ao mesmo tempo, incontáveis hipóteses, de algum modo voltado para uma finalidade. Há um objetivo a alcançar, momentâneo e imediato, ou que se projeta no futuro, para o qual essas etapas se orientam.

Pensar é pensar a diferença” denota também uma característica que permeia o ato de pensar a todo instante, que é a autorreferência. A descrição do próprio pensamento é, assim, autorreferencial. Para falar dele, de consciência, do mundo, o pensamento se volta sobre si para então se projetar. Ele primeiro se reconhece, depois supera a barreira do indiferenciado e, por fim, passa a operar, conceituando objetos, classificando-os, emitindo juízos.

As etapas citadas ocorrem tão rapidamente que a sua observação força-nos a concluir pela sua pressuposição. Todos os atos humanos pressupõe uma série de operações do pensamento que contrastam pela complexidade do seu conjunto e pela simplicidade das pequenas partes que o compõem.

O intrigante nessas operações é responder a certas perguntas: há um verdadeiro começo no ato de pensar? Em que consistiria esse começo? Qual a razão para que na sua própria capacidade de autoanálise esse questionamento surja?

Lembro que nos tempos da minha adolescência, não poucas vezes me vinha uma questão semelhante. Eu me perguntava qual seria a primeira palavra que eu pensaria, se me fosse dado um ponto de partida absoluto – quer dizer, se alguém me dissesse para fechar os olhos, suspender o juízo sobre tudo e, após uma contagem até dez, voltar à realidade como se a visse pela primeira vez. Ficava imaginando qual seria a reação de amigos meus para essa mesma experiência.

Nunca cheguei a perguntar a algum deles sobre isso, com medo de ser repreendido. Por outro lado, ficava esperando que alguém a fizesse para mim, e aí eu teria uma resposta, pois ela fora elaborada com muito cuidado.

A resposta para o ponto de partida absoluto do pensamento poderia ser uma letra – a primeira do alfabeto, pensava eu – ou um número, ou uma expressão, ou uma única palavra. Mas haveria de ter esse primeiro degrau a ser alcançado.

Pois esse ponto de partida absoluto chamava-se “casa”. Esta teria sido a minha primeira reação ao visualizar o mundo pela primeira vez e ser capaz de pensá-lo como alvo da minha percepção. A especulação ia até certo ponto apenas, tentando achar uma justificativa por não ser outra palavra, como “mãe”, “pai”, “Deus”, “A” ou “Y”, mas ela não foi encontrada.

A explicação por se optar pela palavra “casa” está, certamente, em alguma vivência ou memória que faça da casa algo muito importante. Ou pelo simples fato de ela ser a garantia de integridade do próprio pensamento, ou por ser a referência de prazer ou satisfação.

E por que haveria de se pensar um ponto de partida para o pensamento?

Aqui é possível traçar um primeiro paralelo com o mundo. Essa mesma pergunta é feita há séculos quanto à origem do universo. Não é por outra razão que as pesquisas científicas se voltam para tantas frentes em busca de respostas para o início da vida ou o ambiente original que possibilitou a sua criação. Concorrem ainda na mesma busca as várias religiões.

Nessas observações preliminares o que se verifica é uma relativa coincidência entre o modo de pensar e o mundo. Quer dizer, o ato humano de pensar busca em seus diferentes modos de conhecer o mundo e a si mesmo uma estrutura comum. Há um começo necessário para o pensamento, há um começo necessário para o mundo, há um começo necessário para as várias etapas que compõem o continuum da consciência. Um começo que permite pensar a diferença entre agora e antes, entre antes e ainda antes. O ponto de partida que torna possível avaliar a contradição e a não-contradição, que novamente se projeta para o mundo: se é possível pensar a contradição, o pensamento a exclui para preservar o sentido.

Os diferentes momentos projetados pelo começo estabelecido, encadeados de modo sucessivo e, ao menos, parcialmente ordenados, são os condutores do que se poderia chamar de sentido. A noção do começo permite pensar em sentido e é com ela que a não-contradição se afirma.

Há, portanto, uma relação necessária entre pensamento e começo. A estrutura de natureza lógica que possibilita a construção do sentido requer o ponto de partida, o início de tudo. O pensamento opera assim para se afirmar como consciência e afastar a contradição. Depois, como Hegel antecipava em sua obra no início do século XIX, a estrutura lógica do pensamento se projeta sobre a estrutura lógica do mundo. Ambas coincidem necessariamente sob pena de inconsistência. Pensar, portanto, é antes de pensar a diferença, pensar um começo.

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