terça-feira, 30 de novembro de 2010

III - Percepção consciente e ação humana (final)

Parte II – A percepção pura e a memória

Se está correta a lei bergsoniana de que percepção e ação estão relacionadas de modo que, a primeira dispõe do espaço na exata medida em que a segunda dispõe do tempo, o passo seguinte da análise do corpo será a de investigar como é gerada a consciência, ou como a percepção adquire a particular característica de ser consciente.

Não é possível identificar a percepção consciente sem analisar as noções de percepção pura, discernimento e memória.

Preliminarmente, é preciso registrar qual a importância do sistema nervoso e dos órgãos dos sentidos na percepção, para Bergson: é indispensável, a percepção da matéria sem os órgãos dos sentidos é praticamente impossível, não serviria para nada (BERGSON, 2010a, p. 43).

A percepção pura é uma hipótese criada por Bergson para entender a consciência. Ela é, portanto, mais de direito que de fato, uma parte da percepção inteira.

A percepção na sua integralidade está impregnada de lembranças, de conteúdos da memória. Os dados presentes dos órgãos dos sentidos são misturados sempre com lembranças. As lembranças entram numa espécie de disputa de espaço com os elementos próprios da percepção, fazendo com esses dados sejam diluídos numa base de experiências anteriores. Há, inclusive, um deslocamento das percepções reais pelos conteúdos de memória, o que pode resultar em ilusões, ou considerar imagens próprias de lembranças como se resultassem de uma percepção atual.

Para explicar a percepção consciente, Bergson sugere que se considere possível separar da percepção integral tudo aquilo que seja lembrança, conteúdo da memória, restando assim apenas o que a matéria, os pontos no espaço que estão em contato com o nosso corpo, nos oferecem como visão imediata. Esta é a chamada percepção pura.

A percepção purificada de qualquer conteúdo da memória é a representação que fazemos do mundo material. Entre presença e representação há diferença, que poderia ser interpretada como um acréscimo ou um decréscimo. Na primeira hipótese, a representação estaria envolvida em algo misterioso, inexplicável. Tal obstáculo seria superado na segunda, em que a representação é menos do que a imagem é em si.

Bergson afirma, portanto, que a representação das imagens é, efetivamente, a sua conversão em algo de menor conteúdo, no qual certos pontos são obscurecidos, diminuindo a sua extensão (BERGSON, 2010a, p. 31).

Os pontos suprimidos das imagens são aqueles que as relacionam de modo solidário com outras imagens. O universo é amplo demais para que a percepção consciente o capte de modo integral. Por isso, há um direcionamento para pontos essenciais que captam apenas o invólucro.

Esse direcionamento obedece a um critério de ação, de influência. A percepção consciente isola os pontos em que a ação do corpo é possível.

A percepção é comparável ao fenômeno da reflexão dos raios de luz, que passam de um meio a outro mudando de direção. Em alguns pontos não há reflexão e mudança de direção, mas refração pura e simples. Os raios não passam pelo meio. Na percepção ocorre algo semelhante no que diz respeito às imagens que se relacionam ao nosso corpo e a seus centros de ação. Aqueles pontos da imagem que efetivamente interessam ao corpo pelo critério da atividade não o atravessam, mas são refletidos de volta ao objeto da percepção, como num efeito de miragem.

É nesse sentido que Bergson afirma ser a representação das coisas a medida da atividade do nosso corpo sobre elas (BERGSON, 2010a, p. 35). E essa medida, que resulta na escolha de pontos essenciais das imagens e numa segunda imagem menor que a do mundo material, é o que conhecemos por discernimento.

A percepção consciente, ou consciência, é necessariamente pobre. Ela não é uma fotografia da realidade, é muito menos que isso, é apenas um fantasma da matéria ou dos átomos que a compõem. Entre o ser e o ser percebido há um intervalo, maior ou menor, em que uma série de qualidades da matéria em si foi desconsiderada. Mas é preciso considerar que há uma complementaridade entre ambos – o que falta à matéria percebida continua lá, na matéria em si.

O mecanismo da percepção, no entanto, está desenhado. Imagens existem no exterior do nosso corpo que alcançam os órgãos dos sentidos, cuja influência é levada por nervos até o cérebro na forma de um movimento que vai do mundo externo para o interno. O cérebro comandará por fim, como uma central telefônica, a ação voluntária decorrente.

Retomando a importância dos órgãos dos sentidos para a percepção, Bergson formula a hipótese em que os nervos sensitivos são cortados parcial ou totalmente (BERGSON, 2010a, p. 44).

A partir do corte desses nervos, o prejuízo imediato para o nosso corpo ocorre sobre o discernimento, responsável pela diferença entre o ser e o ser percebido. Os movimentos do corpo continuariam possíveis, porém não haveria mais como coordená-los. A atividade do nosso corpo estaria, desse modo, muito diminuída, como no caso da perda da visão. Sem as impressões visuais, as ações continuam virtualmente possíveis, mas novos arranjos teriam que ser feitos no âmbito cerebral para compensar essa perda de atividade.

Como se forma a representação?

Ela se forma na infância, a partir de sucessivas induções. Inicialmente ela é impessoal para depois tomar o nosso corpo como centro e se tornar a nossa representação. O nosso corpo se desloca no espaço e permanece sempre invariável, enquanto que as demais imagens variam. Assim, pois, é por indução que se forma o centro corporal de referência para o qual convergem todas as outras imagens.

A percepção em estado puro, do mesmo modo, não vai do nosso corpo aos outros corpos. Ela está inserida num conjunto dos outros corpos; aos poucos ela vai se contraindo e limitando e adota o nosso corpo como centro. Ela é levada a essa centralização pela experiência: o nosso corpo tem a faculdade de efetuar ações e experimentar afecções e ele ocupa sempre o centro da representação. Essa experiência constante faz com que as outras imagens sejam, paulatinamente, organizadas pela percepção em torno do nosso centro corporal a partir de um critério de ação que este pode lhes submeter. A imagem interior dessa imagem privilegiada também é por nós percebida, diferente das outras das quais se conhece apenas uma película superficial. Esta imagem privilegiada é o centro do nosso universo, a base da nossa personalidade, nosso corpo (BERGSON, 2010a, p. 64).

A inversão bergsoniana, portanto, parte da ação e não da afecção para explicar a relação entre as imagens e as ideias, ou o ser e o ser percebido. Parte do nosso corpo e da sua potencialidade de operar mudanças no mundo exterior que o cerca. Desde logo, Bergson insere o corpo no conjunto de imagens extensas, no mundo objetivo, diferente da Psicologia tradicional que iniciaria diretamente pela análise da subjetividade.

Inserido nesse universo material, nosso corpo percebe centros de indeterminação próprios da vida. As ações são irradiadas desses centros a partir do movimento ou da influência das imagens umas sobre as outras. A matéria viva primitiva realiza essa função quando se alimenta ou se repara. Já as formas de vida mais sofisticadas dividem essas funções em órgãos diferentes, destinando a primeira para os órgãos de nutrição e a segunda para o sistema nervoso, cuja função específica é agir. Os elementos nervosos ainda se dividem em extremidades, uma delas captando impressões exteriores, a outra efetuando movimentos. No exemplo da visão, os bastonetes e cones recolhem impressões e estímulos que serão transformados ou direcionados para movimentos específicos. A percepção nasce da mesma causa que deu origem ao sistema nervoso: ela exprime e mede a capacidade de agir do ser vivo, a indeterminação do movimento ou da ação que seguirá o estímulo recolhido (BERGSON, 2010a, p. 66/67).

A percepção em estado puro, portanto, faz parte das coisas. Ela não é produzida pelo cérebro, nem um fenômeno independente de qualquer experiência. A percepção em estado puro é o que de mais objetivo se pode imaginar no contexto da relação entre sujeito e mundo. E a sensação não surge da consciência, ela coincide com as modificações necessárias que sofre a particular imagem do nosso corpo.

E a memória, como é entendida a partir da hipótese da percepção pura? Ela é o fio condutor de uma série de visões instantâneas que integra essa percepção pura mais voltada para as coisas do que para nós.

A memória, enquanto sobrevivência de imagens passadas, está sempre se misturando com as imagens da percepção presente, podendo até mesmo substituí-las. Nossas percepções, em outras palavras, estão impregnadas de lembranças. A memória intercala o passado no presente. E é ela que dá o caráter subjetivo da percepção.

Segundo Bergson, o erro causador de dificuldades de compreensão desses fenômenos é considerar que entre percepção pura e lembrança há apenas uma diferença de grau, e não de natureza (BERGSON, 2010a, p.70). O papel do Psicólogo seria, nesse sentido, separar justamente essas duas situações. Uma das dificuldades criadas por esse erro é considerar a memória algo que ela efetivamente não é, uma percepção mais fraca, o que permite também dizer que a percepção é um lembrança mais intensa.

Este é um erro da Psicologia que impede que se explique de modo adequado a memória, e acaba influenciando a Metafísica com suas concepções realista e idealista da matéria.

Enfim, o caráter subjetivo da percepção é dado pela memória e pelo tempo. O conjunto de lembranças da minha memória se associa com a percepção pura e costura as diferentes e instantâneas imagens que se sucedem no devir. O caráter de continuidade é oferecido pela memória, a qual é representativa do tempo – ela contrai o presente em momentos do passado, em lembranças que são, posteriormente, associadas com os novos resultados da percepção e das sensações, que serão temporalizadas.

Considerações finais

O primeiro capítulo de “Matéria e Memória”, sobre o papel do corpo, é uma introdução ao tema maior de Bergson nesta obra, a memória, que é tratada nos capítulos centrais que seguem.

O corpo é analisado como o grande instrumento da ação, do movimento. Ao dispor da percepção, o corpo se volta para o universo, para os objetos materiais que o cercam na forma de imagens, de modo a se relacionar com eles por um critério de movimento. Os objetos externos transmitem movimentos ao corpo e este reage.

A percepção consciente é uma característica própria de organismos vivos mais avançados, providos de sistema nervoso central. Ela depende intrinsecamente dos órgãos dos sentidos. Também ela permite que o nosso corpo aumente os pontos de contato e de relação com o mundo exterior, ampliando o horizonte e o espaço diante de nós.

Diferente do que ocorre em organismos primitivos, a ação humana não é uma mera reação táctil, ela é caracteristicamente indeterminada. Antes do contato direto, a percepção consciente já projeta ações virtuais possíveis e aqui se identifica um primeiro indício de liberdade.

A percepção lato sensu, num segundo momento, deve ser analisada nos seus aspectos constituintes. Enquanto percepção consciente, ela está impregnada de lembranças, de conteúdo da memória.

É a memória que dá a característica de consciente à percepção. A memória representa o passado e é o resultado das experiências anteriores, as quais, pela indução, tornaram o nosso corpo o centro e a referência enquanto situação no mundo.

Nosso corpo é uma imagem entre muitas outras, com que ele se relaciona pelo critério do movimento. Ao se firmar como centro referencial, tal experiência induz a consciência ou a percepção consciente.

Despojada da memória, a percepção pura é mero presente. O presente é constituído por infinitos pontos que se sucedem espacialmente. Somente com a inserção do tempo, sob o signo da memória e da experiência do passado, que esses pontos aderem ao nosso corpo e fundam a noção de consciência.

E aqui retomamos à frase fundamental de Bergson: a percepção dispõe do espaço na exata proporção que a ação dispõe do tempo.

Bibliografia consultada

BERGSON, Henri. Matière et Mémoire: essai sur la relation du corps à l’esprit. Le Choc Bergson. Édition critique. 8ª edição, Paris: PUF, 2010.

_______________. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução Paulo Neves. 4ª edição, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010a.

________________. Memória e Vida; textos escolhidos por Gilles Deleuze. Tradução Claudia Berliner. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2006.

DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução Luiz b. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 1999.

RIDAU, Émile. Les rapports de la matière et de l’esprit dans le bergsonisme. Paris: Librairie Félix Alcan, 1932.

RIQUIER, Camille. Arquéologie de Bergson. Temps et métaphiysique. Paris: PUF, 2009.

RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Livro Quarto. Tradução de Brenno Silveira. 3ª edição, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.

VIEILLARD-BARON, Jean-Louis. Compreender Bergson. Tradução de Maria de Almeida Campos. Petrópolis: Vozes, 2007.

WORMS, Frédéric. Introduction à Matière et mémoire de Bergson. Paris: PUF, 1997.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

II - Percepção consciente e ação humana

PARTE I – A percepção e o espaço

Mesmo que “Matéria e Memória” se proponha a ser, essencialmente, mais uma obra cujo objetivo é analisar as relações entre corpo e espírito, o corpo e a alma, ou ainda entre o espírito e a matéria, como o subtítulo já antecipa, Bergson não apenas retoma e reafirma o dualismo clássico, mas inova o modo de apresentá-lo.

Inova o modo de apresentar o dualismo, porque utiliza conceitos novos, como o de imagem para se referir à matéria. Inova quando valoriza o senso comum no modo como esse olha a matéria, assim como quando utiliza a função psicológica da memória como ponto de referência ou exemplo para explicar as relações entre espírito e matéria.

Bergson indica desde logo, no prefácio, quais são os princípios que o guiarão em “Matéria e Memória”.

Primeiro, a análise psicológica inerente à investigação do Ensaio será pautada por um caráter utilitário das funções mentais, as quais estão essencialmente voltadas para a ação. Por que isso? Porque a Psicologia, segundo Bergson, tem por objeto o estudo do espírito humano enquanto este funciona utilmente na prática, sendo que a Metafísica dispõe do espírito humano já desembaraçado da ação e se assumindo como pura energia criadora (BERGSON, 2010a, p. 9).

Segundo, que os hábitos contraídos na ação humana, quando transpostos à esfera da especulação, criam problemas artificiais ou não-naturais que são objetos da Metafísica.

O papel do corpo propriamente dito é descrito a partir da análise das noções de consciência, percepção e ação.

A realidade imediata captada pelos sentidos, abstraindo-se de qualquer teoria realista ou idealista, é formada por imagens. Dentre essas imagens a mais evidente e importante, aquela que prevalece, é a do nosso próprio corpo. Este é, portanto, o ponto de partida de Bergson na análise da matéria em sua relação com o espírito.

Ao nosso corpo cabe uma função que é a de selecionar imagens para a representação. O cérebro tem um papel importante nessa atividade, todavia não é ele que produz as imagens do universo. Ele próprio é uma imagem e, portanto, segundo Bergson, seria absurdo afirmar que a representação do universo inteiro estaria nele implicada (BERGSON, 2010a, p. 13).

Qual a relação entre a imagem do nosso corpo e as imagens que lhe são exteriores? É uma relação de movimento. As imagens externas ao nosso corpo lhe transmitem movimento e este, por sua vez, restitui movimento àquelas imagens. O nosso corpo é, portanto, um centro de ação ou, simplesmente, um objeto destinado a mover objetos (BERGSON, 2010a, p. 14).

É possível afirmar, portanto, que a realidade assumida por Bergson no capítulo inicial de “Matéria e Memória” é a de um conjunto de imagens percebido pelos órgãos do sentido do nosso corpo, tal como faz o senso comum. A existência das imagens não depende da atividade cerebral. Tal como o próprio cérebro, são imagens com existência assegurada por si mesmas e que estão submetidas às leis da natureza. Matéria e imagem, enfim, se equivalem.

O movimento é o que produz a dinâmica entre as imagens. A realidade não é formada por imagens estáticas, mas imagens que se relacionam com trocas constantes de movimento. O nosso corpo se relaciona com outras imagens de diferentes maneiras, de acordo com a distância, com o espaço que as separa dele. Perceber essas imagens significa, assim, a ação potencial ou possível do nosso corpo sobre as mesmas.

Em termos bergsonianos, os objetos que cercam meu corpo refletem a ação possível do meu corpo sobre eles (BERGSON, 2010a, p. 16).

Ação e percepção estão intrinsecamente relacionadas. A afirmação é demonstrada a partir de uma modificação hipotética do nosso corpo, na qual são seccionados os nervos aferentes do sistema cérebro-espinhal, responsáveis pela percepção. O mundo e o restante do nosso corpo permaneceriam iguais e a mudança operada teria pouca significação. Entretanto, toda a nossa percepção despareceria, o que significa que o cérebro e a medula não poderiam mais receber e nem transmitir movimentos. Os nervos seccionados eram os transmissores desses movimentos internos e, portanto, eram eles que permitiam a ação do corpo.

A percepção é, desse modo, o âmbito no qual são projetadas as nossas ações ou que contém virtualmente todas as nossas ações.

O aspecto paradoxal dessa situação hipotética é que uma mudança no mundo material – o ato de seccionar nervos do nosso corpo – causou uma mudança do que chamamos “nossa percepção”, o que leva Bergson a uma nova definição: matéria é o conjunto das imagens, e percepção da matéria são as essas mesmas imagens então relacionadas à ação possível de uma certa imagem determinada, nosso corpo (BERGSON, 2010a, p. 17).

As imagens são, então, classificadas em dois sistemas. Há um sistema de imagens o qual conhecemos simplesmente como universo. Neste sistema as imagens estão voltadas para si e não para o corpo, influenciando-se reciprocamente. Ao lado deste está outro sistema de imagens denominado nossa percepção do universo, no qual o corpo é a referência mais importante. Qualquer movimento desse corpo faz com que tudo mude nesse sistema, como num caleidoscópio que está sendo girado. (BERGSON, 2010a, p. 20).

Uma mesma imagem pode estar, simultaneamente, em ambos os sistemas – um regulado pela ciência, o outro regulado pela consciência, no qual todas as imagens se regulam a partir de uma única, o nosso corpo.

Realismo e idealismo são posicionamentos que nascem das relações possíveis entre esses dois sistemas. A pergunta que se faz o realista e o idealista é a seguinte: o que é o universo?

O primeiro dirá que se trata de um conjunto de imagens regidas por leis da natureza, de caráter necessário e imutável. Mas não poderá negar que existem percepções, ou um sistema de imagens em que o corpo é a referência e todas as imagens se orientam a partir dessa imagem dita central. O segundo, o idealista, partirá desse segundo sistema para derivar o anterior, do universo propriamente dito. Ambos não negam a existência dos dois sistemas, apenas invertem a dedução de um e outro.

O tempo se relaciona de modo diferente com os dois sistemas. Enquanto que o sistema do universo propriamente dito é, exclusivamente, o momento presente, o universo percebido é o que possibilita a noção do devir, do tempo passado, presente e futuro, da sucessão de momentos. Sem o universo percebido não há temporalidade, há apenas um estático presente.

A matéria é imagem. O universo é constituído por um conjunto de imagens. O nosso corpo é uma dessas imagens. Estas imagens relacionam-se entre si.

Qual é o critério para que essas imagens se relacionem? É o movimento. As imagens se relacionam entre si com troca de movimentos, umas influenciando as outras. Os movimentos do nosso corpo são as ações.

O que é a percepção do nosso corpo? É a ação potencial que ele exerce sobre as outras imagens. Essa ação varia de acordo com a distância, o espaço, existente entre as imagens e o nosso corpo.

Portanto, a realidade é uma dinâmica de imagens dentre as quais há uma de especial importância, que é o nosso corpo, cuja percepção é a razão de ser de um duplo nível do real: o universo ou o sistema de imagens que não possui centro e é regido por leis naturais imutáveis, e o universo percebido, ou o sistema das mesmas imagens agora estritamente relacionadas a uma imagem central, o nosso corpo.

Segundo Bertrand Russell, um dos críticos mais conhecidos das teses bergsonianas, há aí uma confusão evidente entre o ato de conhecer e o objeto conhecido e que vicia o entendimento do que Bergson está propondo com a sua Filosofia. A matéria e o ato de perceber a matéria consistem, erroneamente, para Bergson das mesmas coisas (RUSSELL, 1969, p. 373).

Ambos os sistemas de imagens, ou níveis de realidade – um objetivo, outro subjetivo – são permeados pela noção de tempo, necessariamente. Enquanto o universo objetivo está vinculado unicamente ao presente, o universo percebido se vale do passado, do presente e do futuro e garante uma experiência mais ampla, de continuidade.

Continuidade e temporalidade são, enfim, noções coextensivas. Não há continuidade sem temporalidade ampla, sem passado, presente e futuro. E não há temporalidade ampla da qual não decorra continuidade.

Ainda, outra observação possível de ser feita sobre o texto bergsoniano é que universo e universo percebido são experiências que não se excluem mutuamente. Não é impositivo que se opte por uma ou outra experiência, elas são complementares e não excludentes.

E aqui retornamos ao prefácio. Bergson se propôs a analisar a matéria neste primeiro capítulo antes da dissociação realizada pelas teses rivais do realismo e idealismo, antes de pensar como Descartes e como Berkeley. A dificuldade de realizar semelhante análise é grande depois que os filósofos separaram realidade e aparência.

Segundo Bergson, se na história do pensamento a ênfase de análise da matéria tivesse sido pelo caminho do meio entre as teses de Descartes e Berkeley, a Metafísica não teria sido sacrificada à Física. O senso comum teria prevalecido e as críticas de Kant, por exemplo, não teriam sido necessárias (BERGSON, 2010a, p. 3 e 4).

Para superar as dificuldades teóricas do realismo e do idealismo, Bergson encontra no modo como se entende a percepção um elemento fundamental comum a ambos. A percepção tem uma natureza especulativa e é voltada para o conhecimento puro. É contra esta noção que Bergson se volta, por considerar que perceber não é conhecer (BERGSON, 2010a, p. 24).

A percepção não está voltada para o conhecimento puro. Ela é, em verdade, um sistema de reação do corpo aos movimentos externos que lhe são transmitidos pelos objetos que o cercam.

O sistema nervoso é a condição de possibilidade da percepção e o seu maior ou menor desenvolvimento fará com que ela seja mais ou menos apurada. Para demonstrá-lo, Bergson descreve o progresso da percepção externa a partir dos organismos primitivos até os atuais vertebrados superiores.

Os organismos de vida primitivos, como a ameba, reagiam de modo mecânico aos estímulos exteriores. A evolução fez com que organismos vivos mais complexos fossem gerados, nos quais as funções fisiológicas passaram a ser organizadas em diferentes sistemas – de um lado, funções de reação mecânica, de outro, funções vinculadas a um sistema nervoso, não propriamente mecânico. De um lado estão as ações reflexas, de outro estão as ações voluntárias.

Esses dois sistemas se valem de um órgão principal. O sistema nervoso é regido pelo cérebro e o sistema de ações reflexas, pela medula. Ambos são responsáveis pelos movimentos do corpo. Não há, entretanto, uma diferença de natureza entre os dois sistemas. Há uma diferença de complexidade.

O cérebro funciona como uma espécie de “central telefônica”, segundo Bergson. Ele não cria representações nem imagens. O cérebro tem seu papel vinculado à transmissão e repartição dos movimentos do corpo. Ele é um receptor de excitações.

Recebida a excitação, o cérebro faz uma distribuição do movimento. Ou ele o distribui para um órgão de reação específico, ou ele o disponibiliza para a totalidade das vias de movimento para analisar a melhor opção.

Qual a consequência de uma crescente complexidade desse sistema nervoso conduzido pela central telefônica que é o cérebro? Há uma relação direta entre a maior complexidade do sistema e uma percepção cada vez mais apurada.

Essa percepção aperfeiçoada aumenta distâncias.

Os organismos primitivos, que eram desprovidos de sistema nervoso, somente reagiam a estímulos externos depois que eram fisicamente tocados. A percepção era uma mera reação mecânica. Os organismos complexos, que possuem sistema nervoso, são providos de órgãos dos sentidos e é com eles que a percepção se antecipa à reação táctil. Ao invés de aguardar o toque para reagir, a percepção aumenta os pontos no espaço com os quais entra em relação e, desta forma, mecanismos mais complexos de ação são colocados em funcionamento.

Segundo Bergson, a perfeição crescente da nossa percepção se dá na mesma proporção em que ela torna cada vez menos necessária a ação. Dessa forma, é possível afirmar que a percepção está voltada para a ação, e não para o conhecimento puro como se supunha até então (BERGSON, 2010a, p. 27).

A percepção não é criadora de realidade, ela é um instrumento do nosso corpo que comanda e administra a nossa ação. Quanto mais imediata deve ser a resposta aos movimentos recebidos, mais a ação se assemelha a impulso mecânico. Por outro lado, quanto mais essa ação se torna incerta ou indeterminada, mais a percepção se parece com um modo de organização de complexidade crescente que permite ao ser vivo avaliar qual seria a melhor ou mais adequada ação a ser adotada.

Da maior amplitude da percepção decorre uma maior indeterminação da ação. Quanto mais pontos de contato no espaço estiverem em relação com o ser vivo, maior a sua independência, maior a sua liberdade de ação. E liberdade aqui é tão somente a medida do tempo que a ação dispõe: quanto mais tempo, mais livre ou indeterminada é a ação, cujo contraponto é a ação imediata e mecânica, de natureza estritamente impulsiva.

Tendo estas considerações por fundamento, Bergson enuncia o que é uma lei natural explicativa do modo como a percepção e a ação se relacionam com o tempo e o espaço: a percepção dispõe do espaço na exata proporção em que a ação dispõe do tempo (BERGSON, 2010a, p. 29).

Referências:
 
BERGSON, Henri. Matière et Mémoire: essai sur la relation du corps à l’esprit. Le Choc Bergson. Édition critique. 8ª edição, Paris: PUF, 2010.
 
_______________. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução Paulo Neves. 4ª edição, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010a.

RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Livro Quarto. Tradução de Brenno Silveira. 3ª edição, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

I - Percepção consciente e ação humana *

Análise do primeiro capítulo de Matéria e Memória, de Henri Bergson

Introdução

“Matéria e Memória” foi escrito em 1896. É a segunda obra de Henri Bergson, antecedida pelo “Ensaio sobre os dados imediatos da consciência”, de 1889.

Ao tempo da publicação, Bergson tinha 37 anos e ensinava Filosofia no Liceu Henri-IV de Paris. Seu nome ainda não era reconhecido entre os colegas de trabalho. “Matéria e Memória” é considerado um ponto de transição no caminho que levou o autor à recepção do grande público, que ocorre com a sua nomeação para o Collège de France, em 1900, e definitivamente com a publicação de “Evolução Criadora”, em 1907 (WORMS, 1997, p. 3).

O tema tratado por Bergson nesta obra é clássico: o problema da união da alma e do corpo, o dualismo representado em grandes linhas pela relação entre o universo e a subjetividade.

O título da obra enuncia um dualismo que contrapõe a realidade da matéria à uma função psicológica, a memória. Este é o primeiro aspecto surpreendente a ser observado, já que, tradicionalmente, a contraposição conhecida dava-se na oposição entre matéria e espírito.

O subtítulo, “Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito”, retoma o dualismo do título e cria uma espécie de cruzamento sintático ou efeito espelho: a matéria do título encarna no corpo do subtítulo, enquanto a memória é assimilada pela realidade do espírito (WORMS, 1997, p. 2).

A obra é estruturada em quatro capítulos:

I – Da seleção das imagens para a representação. O papel do corpo;

II – Do reconhecimento das imagens. A memória e o cérebro;

III – Da sobrevivência das imagens. A memória e o espírito;

IV – Da delimitação e da fixação das imagens. Percepção e matéria. Alma e corpo.

A publicação de “Matéria e Memória” ocorre num período de efervescência da Psicologia na França. Um dos temas do momento era, justamente, a memória. Bergson escreve seu texto dentro desse contexto muito específico e suas ideias são, de um certo modo, uma reação à outra obra publicada no mesmo período, em 1881, Maladies de la mémoire, de Théodule Ribot, autor citado em várias passagens do texto.

Ribot era um filósofo amigo e contemporâneo de Bergson. É considerado o fundador da Psicologia científica francesa. Foi o responsável por incluir a Psicologia nos estudos universitários na França e os seus estudos sobre a memória são especialmente célebres. Bergson publicou, antes de 1896, partes de “Matéria e Memória” mais voltadas para Psicologia na Revue Philosophique de La France et de l’Étranger, que era dirigida à época pelo mesmo T. Ribot.

Entretanto, a noção de memória de Ribot contrasta muito com aquela defendida por Bergson. Ribot defende a ideia segundo a qual as lembranças estão localizadas em alguma parte do cérebro, sendo, portanto, entes materiais. Diferente de Bergson, que atribui à memória uma característica estritamente imaterial e considera o cérebro uma central telefônica que orienta a memória para as ações. O conjunto das lembranças, a memória, é inserido no presente com vistas exclusivamente à ação do corpo. Nem mesmo lesões no cérebro são capazes de apagar as memórias, mas apenas dificultar ou inviabilizar as ações ou movimentos do corpo (LE CHOC BERGSON, 2010, pp. 290, 291 e 346).

Ribot, de modo totalmente diferente, considera que os elementos espirituais podem ser reduzidos à matéria. Os sentimentos são efeitos da atividade fisiológica, decorrem de reações químicas. E a sua obra sobre as doenças da memória é uma referência importante da Psicologia, ao menos no período entre a sua publicação (1881) e o início da Segunda Guerra Mundial. Ele se vale em parte das observações da Medicina e da Psiquiatria para formular suas teses sobre a memória, analisando-a a partir das doenças que a afetam e a dissolvem.

Bergson faz constantes referências e críticas em seu texto aos estudos da Psicologia do seu tempo e, quando o faz, está voltado em regra aos estudos de Ribot sobre a memória.

Neste trabalho faremos a análise do primeiro capítulo de “Matéria e Memória”, destacando para tanto uma frase do texto que nos pareceu a melhor síntese do mesmo: A percepção dispõe do espaço na exata proporção que a ação dispõe do tempo (BERGSON, 2010a, p. 29).

Na primeira parte analisaremos a noção de percepção vinculada ao espaço, sendo que na segunda a percepção será cindida e separada da memória.


Referências:


BERGSON, Henri. Matière et Mémoire: essai sur la relation du corps à l’esprit. Le Choc Bergson. Édition critique. 8ª edição, Paris: PUF, 2010.


_______________. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução Paulo Neves. 4ª edição, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010a.


WORMS, Frédéric. Introduction à Matière et mémoire de Bergson. Paris: PUF, 1997.

(continua na próxima postagem)
 
* trabalho apresentado no dia 24-11-2010, em conjunto com o colega ANDRÉ RODRIGO BOCHI, na Faculdade de Filosofia da PUC-RS, em História da Filosofia Contemporânea II, coordenada pelo Prof. André Brayner Farias.

sábado, 7 de agosto de 2010

IV – Generalidade e noção de sentido: como o pensamento oscila entre o particular e geral para assegurar a coerência

Marco Antonio Schmitt

O avanço das ideias filosóficas se deve muito às intuições de pensadores que, de alguma maneira, reformularam noções já conhecidas, da Lógica, ou da Metafísica, ou da Ética, e assim deixaram a sua marca na longa e fértil história da Filosofia. Intuições que, a partir da sua enunciação inicial, passaram a ser objeto de longas análises de justificação e debate. Henri Bergson, por exemplo, soube bem avaliar a importância desses novos pontos de partida na sua “Intuição Filosófica” (Ed. Colibri, Lisboa, 1994).

Este registro é feito para dizer, primeiro, que o presente ensaio, assim como os que o antecederam sobre as categorias fundamentais do pensamento, constitui-se de uma série de proposições absolutamente intuitivas, as quais serão devidamente relacionadas para, mais adiante, terem a sua fundamentação ampliada.

Segundo, para dizer que a intuição é uma espécie da categoria fundamental do começo. Se pensar é pensar um ponto de partida, a intuição é o que se poderia assegurar como um começo genuíno. O movimento criado a partir dela é totalmente novo e incerto, já que ele não encontra justificação imediata em algum ponto de experiência anterior.

Esse ponto de partida intuitivo é possível de ser descrito como uma imagem de totalidade. A intuição se apresenta tal como um objeto observado do alto ou à distância. A imagem é clara e, aparentemente, é coerente, faz sentido.

À medida que o movimento do ato de pensar se aproxima dessa imagem preliminar, há necessidade de elementos novos que possibilitem a continuidade da coerência. Quando algum ponto componente se torna obscuro, o entendimento estanca seu andar e retorna ao ponto de coerência anterior. O movimento se repete e o ponto desconhecido é reavaliado. Há uma rede de sucessivas validações que permitem, sempre tendo a busca da coerência como vetor, ao movimento avançar e entender.

As validações são a forma assumida pelos pontos de justificação. Tendo uma referência inicial sempre pressuposta, o ato de pensar se concentra sobre um novo ponto da intuição assumida e opta por uma de duas possibilidades: aceita ou não aceita, justifica ou não justifica. Quando o ponto de justificação se consolida, o movimento avança. Deixa-se para trás um novo ponto de começo.

Dito de outra maneira, à medida que esse avanço ocorre, o ato de pensar se orienta da generalidade para o particular e isso traz como ônus uma progressiva dificuldade para manter a relação de sentido. As menores partes analisadas isoladamente carecem de sentido e, como isso não é algo que o ato de pensar possa integrar na sua rotina, a solução encontrada é o retorno e a repetição. O ponto de partida anterior deve ser retomado e o percurso novamente feito. É provável que se encontre um limite do qual o movimento não avance mais, por faltar em definitivo a garantia de coerência futura, dadas certas condições subjetivas.

O modo como as pesquisas científicas se desenvolvem em certas áreas é semelhante à descrição feita anteriormente. A análise da matéria e das suas partículas elementares é um exemplo. A cada passo dado pelos cientistas na direção de encontrar o que há de mais fundamental na matéria, são descobertas partículas cada vez menores e mais instáveis, muito diferentes da imagem inicial distanciada e ordinária de algum objeto. Adentrar o mundo dessas pequenas partes, que já se sabe estarem em constante e rápido movimento, contrastando com a firmeza externa dos objetos vistos por nós sem o auxílio de microscópios, seria desastroso para a nossa compreensão, pois ela não é compatível com a particularidade extrema.

O ato de pensar se mantém, ordinariamente, voltado para uma coerência só encontrada no mundo das macrorrealidades. Quando o movimento avança em direção ao particular, haverá um ponto de justificação em que se dará um limite. O sentido acaba ali.

Todavia, a realidade encontrada além daquele limite de coerência não fica totalmente incompreensível. Há uma série de medidas compensatórias que constroem uma linha artificial de coerência, a partir de outra categoria importante: a analogia. Se as microrrealidades, como no caso das partículas elementares da matéria, não encontram um sentido natural associado, a analogia permite que se atribua a coerência por soluções matemáticas, por exemplo.

Enfim, o ato de pensar em movimento, quando direcionado do geral para o particular, avança na medida em que o sentido é assegurado em cada novo ponto demarcado e justificado. A garantia de sentido aqui considerada é aquela dita conatural ao pensamento, que se aproxima facilmente de uma visão geral e que vai perdendo força na medida em que se depara com microrrealidades. Para que estas pequenas realidades possam também ser conhecidas, o pensamento se utilizada da analogia e com ela edifica uma espécie de sentido artificial.

Psicanálise cura ?

Autor: LUIZ ERNESTO CABRAL PELLANDA *


* MÉDICO E PSICANALISTA, MEMBRO EFETIVO DA SOCIEDADE DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE (SPPA)

Contribuição da teoria psicanalítica, em cem anos de prática, ultrapassa função terapêutica

Mas, “cura”, o que é, mesmo? Quando se tem uma infecção é fácil dizer quando ocorre a cura: esbatem-se os sintomas, exames clínicos e laboratoriais retornam a seus níveis de normalidade. Pronto. Quando um osso se quebra, também: depois de imobilizado, o osso cicatriza, se refaz até com reforço local e voltamos a usá-lo como antes. Quem já quebrou uma perna ou um braço, sabe bem disso. Minha avó contava que uma vez, numa fazenda, um queixada abriu a barriga duma menina com as presas, botando as tripas dela para fora. Uma tia lavou tudo com salmoura, botou pra dentro e costurou com agulha de fechar saco e linha grossa. Que essa menina se curou prova o fato de que anos depois casou e teve filhos...

Mas, o que “cura” a psicanálise? Esta é outra história... porque aqui os critérios já não são tão simples. Qual “doente” procura um psicanalista? Falo pelos que me procuraram ao longo destes 50 anos de clínica: todos estavam sofrendo muito, sentindo-se sem rumo ou desamparados, depois de terem ouvido mil conselhos de amigos, pseudo-amigos, inimigos, curandeiros, médicos bem intencionados e, alguns, até nem tanto. Sempre fui a última esperança para eles. Um chegou a me dizer: “Se contigo não der certo, não tenho mais a quem recorrer: dou um tiro nos miolos.” Que responsabilidade! Menos mal que 20 anos depois ainda tive notícias dele e seguia vivo e disposto. Curou-se? Quem mais pode dizer isso senão ele mesmo? Por onde andará para que se possa perguntar-lhe? Um pequeno porém: será que tenho o direito de ir em busca dele para fazer essa pergunta? A nossa relação profissional terminou. Como posso garantir que minha pergunta não seja uma intromissão em sua vida, remoendo restos de transferência que possam estar ainda por resolver? A resposta para esta questão, para mim, é clara: Há um impedimento ético de procurá-lo e a qualquer outro, de modo que essa pesquisa “científica” está, desde logo, prejudicada. Mais uma questão: nos idos de 1900, Freud necessitou grande disposição e energia para demonstrar a existência do inconsciente e da possibilidade de que “pensamentos inconscientes” pudessem influir na conduta ou nos sentimentos conscientes. Naquele tempo só o que era consciente era considerado “mental”. Hoje, a equação se inverteu e estamos lidando para tentar saber como surge a consciência.

Pesquisa em psicanálise não pode seguir a mesma receita linear das ciências básicas, e, mesmo estas, já estão sendo obrigadas a admitir que nem tudo são certezas e que aquilo que a Física Quântica descobriu está contaminando todo o espectro das ciências em geral: a complexidade é a regra e não a exceção. Isto vale, e quanto, para a Biologia: somos seres extremamente complexos que vivemos em sincronia com nosso meio ambiente, nele influindo e por ele sendo influídos.

Corpo e mente não são duas entidades que se relacionam, mas duas expressões de uma mesma substância. Descartes dizia que “saber como uma mente imaterial movimenta um braço material é um problema de Deus, não nosso”. Mas se entendemos tratar-se de uma única entidade, então essa questão deixa de ter sentido, como nos mostra Humberto Maturana. É ele também quem nos chama a atenção para o fato de que o cérebro é uma rede neural fechada e que se comunica com o exterior apenas pelos “cinco” sentidos e pelas placas motoras nos músculos e glândulas. Isto implica em afirmar que não há “transmissão de informação”, mas sim cada um de nós reconstrói dentro dessa rede interna isso que chamamos de informação. O estímulo externo não determina a resposta do ser vivo, mas é sua estrutura que determina qual a consequência. O meu exemplo preferido é o da luz solar que “causa” fotossíntese se incide em uma folha verde ou escurece minha pele (ou causa uma queimadura, se a deixo exposta por tempo demasiado): a luz é a mesma, o efeito depende da estrutura do ser vivo, daí “causa” estar entre aspas porque, na verdade, não “causa” nada... Mas a luz “causou” modificações na estrutura e aí um dado importante: podemos modificar nossa própria estrutura buscando um melhor acoplamento com nosso meio. Pensar sobre nós mesmos, nosso modo de viver pode causar uma revisão de nossa estrutura. É isso que a psicanálise faz.

Voltando ao nosso foco: quando considerar que a psicanálise “curou” alguém? Como não posso perguntar aos meus antigos analisandos, pergunto a mim mesmo: eu me “curei” na minha longa análise? Se formos levar em conta apenas as razões imediatas de eu ter procurado análise, a resposta é “sim”: eu parei de fumar, parei de me preocupar com bobagens, completei minha formação como Psicanalista na SPPA, achei uma companheira muito especial, casei durante a análise, e fui feliz desde então. Tive três filhos e agora tenho dois netos, sendo que a Marina eu ganhei de aniversário quando fiz 60 anos. Nunca mais tive ansiedade ou angústia? Evidentemente que tive, mas certamente me senti melhor aparelhado para lidar com essas situações, inclusive com as perdas inevitáveis que a vida nos traz. Que mais posso querer? O que eu ainda quero é poder continuar ajudando as pessoas que me procuram para uma análise, se for possível, ou para uma “supervisão” da auto-análise que cada um continua fazendo enquanto está vivo.

Mas há uma questão básica: uma psicanálise “standard” corresponde a ter um “personal advisor” de alta qualificação acadêmica disponível por quatro ou cinco horas por semana, durante anos. Isso necessariamente tem um custo. Mas o importante é que essa não é a única forma de a psicanálise contribuir para a humanidade, sequer a mais importante. A gama de conhecimentos acumulados nestes mais de cem anos modificou o modo como nos relacionamos. As psicoterapias todas, mesmo as ditas “comportamentais” e ainda que o neguem, bebem na fonte que Freud inaugurou sem fanfarras.

(Texto publicado na Zero Hora de 03-04-2010)

sexta-feira, 30 de julho de 2010

III – Repetir, padronizar e diferenciar: o movimento de síntese do pensamento

Marco Antonio Schmitt

Este é o terceiro ensaio no qual pretendo descrever, ainda de forma absolutamente intuitiva, o que são as estruturas mais básicas do pensamento. Aqui o objetivo é concluir a primeira tríade e afirmar que as duas estruturas estáticas anteriormente apresentadas – autorreferência e começo – compõem o ato de pensar enquanto movimento que se apoia na repetição, induzindo uma sequência que alterna padronização e diferenciação.

A repetição e a formação de padrões – de comportamento, de atividades – são comuns em nossa vida diária, tanto no lugar onde moramos e trabalhamos, quanto na nossa casa e no nosso modo de sobreviver.

A cidade onde nos estabelecemos está assentada na repetição diária de infinitas ações e atividades padronizadas. Diariamente as ruas mantêm os mesmos sentidos de direção, os sinais de trânsito são os mesmos, as linhas de ônibus fazem o mesmo percurso, os restaurantes servem refeições nos mesmos lugares e horários, os cardápios desses restaurantes são os mesmos dentro de certos períodos de tempo, os hospitais recebem e tratam pacientes nos mesmos lugares, as redes de televisão e rádio apresentam a mesma programação, entre outras tantas situações que poderiam ser descritas. Qualquer alteração de tais rotinas, em regra, exige alguma forma de informação que possa evitar o efeito da surpresa. De outro modo, a quebra da rotina por circunstâncias inevitáveis, como acidentes e outros fatos que fogem ao controle da previsibilidade, novamente interrompe uma expectativa de repetição e aciona outra série de atos que visam retomar a normalidade – a repetição anterior.

O lugar onde moramos também tem sua estrutura básica assentada em repetições, algumas vezes mais e outras menos visíveis. No caso de um prédio de apartamentos, a repetição de ações no condomínio é inerente à sua própria existência. Diariamente os elevadores atendem aos mesmos andares, os serviços de limpeza recolhem o lixo, os portões das saídas de garagem abrem para a saída dos automóveis, os porteiros abrem as portas e trocam de turno nos mesmos horários. Para cada possível interrupção já há uma rotina de normalização pronta: serviço de manutenção de elevadores, substitutos dos porteiros, sempre no sentido de retomar a repetição.

Biologicamente também adotamos rotinas, repetição de ações, que favorecem a nossa sobrevivência. Respiração, alimentação e horas de sono se repetem, momento após momento, dia após dia. Rotinas que, se seguidas em padrões rígidos, são melhor assimiladas pelo nosso organismo, o qual, comprovadamente, adapta-se melhor e se mantém mais saudável com a repetição de horários e tipos de alimentação, de horários para dormir e para acordar.

O pensamento se movimenta de modo análogo.

A partir de um começo pensado com justificativas lógicas, o ato de pensar se coloca em movimento. A cada pequeno deslocamento, estimulado pela percepção, o ato de pensar pressupõe o passo inicial anterior que o fundamenta e lhe garante sentido. A cada novo movimento, repete-se a mesma situação: volta-se ao ponto de partida, agrega-se sentido e um novo círculo do entendimento se fecha.

A busca incessante do sentido está, portanto, na base da repetição descrita. Ela se impõe como razão necessária e insuperável para que, em termos bastante gerais, o sujeito possa compreender.

Já a autorreferência se apresenta como epifenômeno do movimento de repetição. A cada repetição, a cada busca do ponto de partida, o pensamento termina por reconhecer-se a si como o mesmo, sempre o mesmo em momentos diferentes. Permite, assim, que se diferencie do mundo enquanto ente, enquanto ser que não se dilui no mundo que o cerca. E este é o contraponto da padronização anterior: a autorreferência torna possível pensar a diferença. O movimento se repete para se diferenciar mais adiante.

Esse epifenômeno decorrente de um constante e repetitivo movimento de retorno e avanço em torno de um ponto de partida do ato de pensar, é o que propicia outras condições essenciais para a existência. A formação da memória, a autoidentificação, a linguagem e a comunicação são exemplos.

As falhas desse movimento, quando há quebra do padrão estabelecido, dão causa às distorções dos demais elementos. A memória de certos eventos desaparece na medida em que eles não foram identificados corretamente e atribuídos ao sujeito que pensa. E assim por diante.

E o que seria conatural ao pensamento, em resposta ao questionamento do primeiro ensaio? Conaturais são as estruturas por ele reconhecidas no movimento de repetição. A autorreferência não está na linha de repetição de estruturas, mas decorre dela, é um epifenômeno do padrão criado. Por isso que ela não é naturalmente reconhecida, enquanto objeto da percepção, como estrutura válida pelo pensamento, e tende a ser identificada como uma contradição.

Como pode soar tão estranho um ensaio como este, sobre como alguém percebe as suas próprias estruturas mentais funcionando? Primeiro, as limitações da linguagem certamente não alcançam a complexidade inerente àquelas estruturas. Segundo, paradoxalmente, o movimento de repetição e autorreferencial do pensamento não consegue apreender a si mesmo, com precisão.

Portanto, há uma forte relação entre o movimento do ato de pensar e a busca de sentido. Esta faz com que o pensamento se volte, constantemente, para o seu ponto referencial inicial e, dessa forma, crie uma infinita repetição de estruturas. Essas estruturas alternam resultados de padronização e diferenciação, isto é, ao mesmo tempo em que inserem os dados da percepção em padrões que se tornam compreensíveis, diferenciam os vários componentes do mundo e suas manifestações. Desse movimento resulta um epifenômeno de natureza autorreferencial, no qual o pensamento se identifica como o mesmo em diferentes momentos, o que se poderia chamar de consciência. Repetir, padronizar, diferenciar.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

II - Pensar é pensar um começo

Marco Antonio Schmitt


A primeira vez que me deparei com a obra do Prof. Stein, intitulada “Pensar é pensar a diferença” (STEIN, E., Pensar é pensar a diferença – Filosofia e Conhecimento Empírico, Ijuí, Editora Unijui, 2002) tive a impressão que aquela pequena frase condensava uma série de conclusões importantes sobre o ato de pensar, mas certamente não abrangia a etapa verdadeiramente inicial do processo.

Para os fins deste ensaio, sem ignorar os estudos já realizados nesta área, considero que pensamento é um processo formado por incontáveis etapas, as quais não formam uma série própria e exclusivamente ordenada. São passos que se sucedem infinitamente, ocorrem de modo simples ou simultâneo e avaliam, ao mesmo tempo, incontáveis hipóteses, de algum modo voltado para uma finalidade. Há um objetivo a alcançar, momentâneo e imediato, ou que se projeta no futuro, para o qual essas etapas se orientam.

Pensar é pensar a diferença” denota também uma característica que permeia o ato de pensar a todo instante, que é a autorreferência. A descrição do próprio pensamento é, assim, autorreferencial. Para falar dele, de consciência, do mundo, o pensamento se volta sobre si para então se projetar. Ele primeiro se reconhece, depois supera a barreira do indiferenciado e, por fim, passa a operar, conceituando objetos, classificando-os, emitindo juízos.

As etapas citadas ocorrem tão rapidamente que a sua observação força-nos a concluir pela sua pressuposição. Todos os atos humanos pressupõe uma série de operações do pensamento que contrastam pela complexidade do seu conjunto e pela simplicidade das pequenas partes que o compõem.

O intrigante nessas operações é responder a certas perguntas: há um verdadeiro começo no ato de pensar? Em que consistiria esse começo? Qual a razão para que na sua própria capacidade de autoanálise esse questionamento surja?

Lembro que nos tempos da minha adolescência, não poucas vezes me vinha uma questão semelhante. Eu me perguntava qual seria a primeira palavra que eu pensaria, se me fosse dado um ponto de partida absoluto – quer dizer, se alguém me dissesse para fechar os olhos, suspender o juízo sobre tudo e, após uma contagem até dez, voltar à realidade como se a visse pela primeira vez. Ficava imaginando qual seria a reação de amigos meus para essa mesma experiência.

Nunca cheguei a perguntar a algum deles sobre isso, com medo de ser repreendido. Por outro lado, ficava esperando que alguém a fizesse para mim, e aí eu teria uma resposta, pois ela fora elaborada com muito cuidado.

A resposta para o ponto de partida absoluto do pensamento poderia ser uma letra – a primeira do alfabeto, pensava eu – ou um número, ou uma expressão, ou uma única palavra. Mas haveria de ter esse primeiro degrau a ser alcançado.

Pois esse ponto de partida absoluto chamava-se “casa”. Esta teria sido a minha primeira reação ao visualizar o mundo pela primeira vez e ser capaz de pensá-lo como alvo da minha percepção. A especulação ia até certo ponto apenas, tentando achar uma justificativa por não ser outra palavra, como “mãe”, “pai”, “Deus”, “A” ou “Y”, mas ela não foi encontrada.

A explicação por se optar pela palavra “casa” está, certamente, em alguma vivência ou memória que faça da casa algo muito importante. Ou pelo simples fato de ela ser a garantia de integridade do próprio pensamento, ou por ser a referência de prazer ou satisfação.

E por que haveria de se pensar um ponto de partida para o pensamento?

Aqui é possível traçar um primeiro paralelo com o mundo. Essa mesma pergunta é feita há séculos quanto à origem do universo. Não é por outra razão que as pesquisas científicas se voltam para tantas frentes em busca de respostas para o início da vida ou o ambiente original que possibilitou a sua criação. Concorrem ainda na mesma busca as várias religiões.

Nessas observações preliminares o que se verifica é uma relativa coincidência entre o modo de pensar e o mundo. Quer dizer, o ato humano de pensar busca em seus diferentes modos de conhecer o mundo e a si mesmo uma estrutura comum. Há um começo necessário para o pensamento, há um começo necessário para o mundo, há um começo necessário para as várias etapas que compõem o continuum da consciência. Um começo que permite pensar a diferença entre agora e antes, entre antes e ainda antes. O ponto de partida que torna possível avaliar a contradição e a não-contradição, que novamente se projeta para o mundo: se é possível pensar a contradição, o pensamento a exclui para preservar o sentido.

Os diferentes momentos projetados pelo começo estabelecido, encadeados de modo sucessivo e, ao menos, parcialmente ordenados, são os condutores do que se poderia chamar de sentido. A noção do começo permite pensar em sentido e é com ela que a não-contradição se afirma.

Há, portanto, uma relação necessária entre pensamento e começo. A estrutura de natureza lógica que possibilita a construção do sentido requer o ponto de partida, o início de tudo. O pensamento opera assim para se afirmar como consciência e afastar a contradição. Depois, como Hegel antecipava em sua obra no início do século XIX, a estrutura lógica do pensamento se projeta sobre a estrutura lógica do mundo. Ambas coincidem necessariamente sob pena de inconsistência. Pensar, portanto, é antes de pensar a diferença, pensar um começo.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

I - Autorreferência e inquietação: por que situações autorreferenciais (não) são conaturais ao pensamento

Marco Antonio Schmitt

Este ensaio não é o resultado de uma pesquisa bibliográfica. Ele também não advém de observações realizadas num laboratório de pesquisas. Não é também a descrição de um sonho. Não é a descrição de um fato observado nas ruas. Não é uma apresentação do próprio autor. Não é propriamente um ensaio.

Afora o excesso de “nãos” utilizados, o parágrafo anterior causa uma perplexidade imediata ao pensamento por estar descrevendo uma contradição. Ou se trata de um ensaio, ou não se trata de um ensaio.

A perplexidade, neste caso em especial, é uma forma de recusa. O pensamento não assimila, não aceita, não torna viável a frase que faz do ensaio um não-ensaio. É possível dizer, portanto, que a contradição não é conatural à estrutura lógica que orienta ordinariamente o ato de pensar.

Há, também, outra situação que causa um efeito semelhante à anterior que é a circularidade ou autorreferência. Pensar sobre si mesmo, reconhecer-se num espelho ou, simplesmente, andar em círculos, são situações que desordinarizam o pensamento. Qual a razão disso? Aparentemente, estas também são situações que não podem ser consideradas conaturais ao modo ordinário de pensar.

Para melhor perceber o que se está tentando dizer, vou relatar três situações que ilustram tais impressões.

A primeira delas é contada por Douglas Hofstadter em seu I am a Strange Loop, e que em algum momento do meu passado já havia sido por mim imaginada.

Hofstadter conta que, ainda nos de 1970, seus pais resolveram comprar uma câmera de vídeo. Chegando à loja, lá estavam instalados vários aparelhos de televisão e, num deles, estava conectada uma câmera direcionada ao público. Dessa forma, os consumidores conseguiam se ver na televisão e ter uma noção do funcionamento do aparelho.

A câmera podia ser direcionada em várias direções, inclusive para o próprio televisor que transmitia as imagens que captava. Com isso, restaria fechado o circuito referencial: a câmera passaria a captar a imagem da própria televisão que reproduz as cenas por ela captadas. Receoso do que poderia acontecer com tal movimento, o autor perguntou ao atendente da loja se autorizava fazê-lo. A resposta foi rápida e nervosa: não, não faça isso, assim você danificará a câmera. Mais tarde, já em casa, Hofstadter fez o que o atendente havia proibido e verificou que, como era de se esperar, nada de indesejável aconteceu.

A segunda situação de autorreferência é parte do filme “Quero ser John Malkovich”, no qual o famoso ator interpreta a si mesmo, embora não seja essa a circularidade mais interessante.

Os personagens da trama encontram um misterioso túnel atrás de alguns arquivos de aço. Quando um deles vai verificar para onde este túnel levava, descobre que ele acaba na consciência do ator John Malkovich e permanece lá por alguns minutos, sendo que após é jogado na beira de uma autoestrada.

Essa situação passa a ser explorada economicamente, oferecendo-se mediante pagamento a oportunidade a qualquer pessoa ser John Malkovich por alguns minutos, vendo o que ele vê, fazendo o que ele faz, assumindo, enfim, a sua personalidade temporariamente.

Quando essa sucessão de intrusos na consciência começa a perturbar e mesmo a interferir no seu modo de ser, Malkovich investiga e descobre a existência do túnel e entra nele também. É neste instante que surgem as perturbadoras imagens da autorreferência.

O mundo de John Malkovich visto por ele em-si-mesmado é formado por homens e mulheres com rostos iguais ao dele. Todos falam uma mesma língua, cujas frases são diferentes entonações da palavra “Malkovich”. O cardápio oferece opções de comida e bebida, todas nominadas “Malkovich”. Há apenas um único John que vê tudo isso, fica ofegante e sai correndo, procurando uma saída desse mundo indiferenciado.

A terceira situação é um fato curioso que aconteceu na minha infância.

O filho de um vizinho, após um grave acidente automobilístico, sofrera danos irreparáveis à sua integridade física e mental. Um dos efeitos mais visíveis por todos que o conheceram foram as intermináveis caminhadas que passou a fazer. Saía dos fundos da casa, dirigia-se até a via pública por uma passagem entre arbustos, estendia-se por mais alguns metros, dava meia-volta e retornava aos fundos. Mesmo em períodos de muito frio, ou de chuva, ou de intenso calor, essa cena se repetia. Talvez com menor frequência nestas épocas, mas não havia longas interrupções. O trajeto do vizinho caminhante era levemente circular, já que não voltava sobre os mesmos passos, nem o fazia de costas. Nunca se soube as exatas razões para que ele agisse daquela forma.

Eu ficava imaginando uma conversa com aquela estranha pessoa, na qual a primeira coisa que eu lhe teria perguntado seria “por que você está caminhando em círculos o dia todo há tanto tempo?” Imaginava, também, que ele não teria uma resposta a dar, afinal a sua capacidade de pensar e agir sofria de uma deficiência que não lhe permitiria dizer algo sobre si. Por outro lado, se houvesse uma resposta possível, ela poderia ter sido “caminho desse modo por recomendação médica, para melhorar a minha forma física e, assim, acelerar a minha recuperação”. Mas isso continuaria não dando as razões para aquele errático caminhar em círculo.

Na primeira situação, da câmera de vídeo, o vendedor de aparelhos eletrônicos reagiu de modo contundente para impedir que Hofstadter a direcionasse para o televisor e, assim, fechasse o circuito de imagens autorreferenciais. Alguma razão técnica? Não, uma falsa razão técnica que velava uma intuição: autorreferenciar a imagem estraga a câmera.

Na segunda situação, a autoconsciência vista por ela mesma, voltando-se sobre si, produziu um mundo aberrante e desconfortável para Malkovich. Um mundo em que a indiferenciação é a regra e a consciência se perde dentro de si mesma.

Na terceira situação, a repetição da caminhada em círculos sem motivo aparente ou declarado, intriga e assusta. Seria possível dela tirar alguma conclusão que não fosse meramente especulativa?

A questão me parece ser esta: como estes movimentos autorreferenciais são assimilados pelo pensamento? Eles são, à primeira vista, inquietantes, porque não há como prever exatamente o seu resultado – para onde eles conduzem o sujeito – ou porque não se encontra sentido naquele movimento.

Em outras palavras, movimentos autorreferenciais não são conaturais ao pensamento. O movimento do ato de pensar não é, ordinariamente, circular ou autorreferente. Ao menos, ele não se percebe assim.

No momento em que ele se depara com situações que assim se parecem, ele as recusa enquanto formas válidas. Supera a recusa, volta-se sobre si e elabora um modo de interpretá-las. Com isso, recupera o sentido e volta a se conectar com o mundo que o cerca. E aqui um ponto que merecerá investigação a posteriori: a superação e a elaboração passam pela avaliação das estruturas lógicas. Se a autorreferência não for mais interpretada como uma contradição, o processo de elaboração foi efetivo. Falhando a elaboração, o pensamento retoma a superação e segue numa relação circular até que um elemento novo apague o que pode ser chamado de nó.

Como tais questões estão reportadas em estudos já realizados pela Psicologia e pela Filosofia da Mente é o que pretendo tratar nos próximos ensaios:

a) qual a relação entre regras lógicas e pensamento;

b) o que são situações conaturais ao pensamento;

c) a autorreferência é conatural ao modo de pensar, embora este não consiga assimilá-la naturalmente em situações que lhe são oferecidas como objetos;

d) a consciência é um modo de autorreferência do pensamento que vela a sua estrutura formal;

e) falsas intuições limitam o pensamento e podem formar barreiras não-racionais de assimilação da realidade.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

John Locke e os papagaios brasileiros do século XVII

Marco Antonio Schmitt

Identidade pessoal, consciência, sujeito, pessoa e ser humano são importantes noções para diferentes áreas do conhecimento. Os estudos da Filosofia foram, certamente, os primeiros a discuti-las. Mais à frente, a Psicologia se especializou e no seu campo próprio de estudo assimilou tais noções para aplicá-las também na área clínica. A identificação e a cura de patologias relacionadas à personalidade não podem delas prescindir. Também são importantes no Direito, como no caso da noção de sujeito para a definição das regras sobre responsabilidade.
Na Filosofia a identidade mereceu destaque na obra de John Locke, que escreveu sobre o tema em 1690, no seu “Ensaio sobre o Entendimento Humano”. O Ensaio não trata de forma exclusiva do tema da identidade pessoal, mas oferece uma importante contribuição para compreendê-la.
Locke diferencia as noções de homem e pessoa. Enquanto a primeira é relacionada apenas ao corpo como animal vivo, “pessoa” tem um grau de abstração maior e se refere ao ser racional e consciente da própria existência contínua.
A consciência contínua implica o ato de reconhecer para si os atos praticados anteriormente no tempo, o que faz com que a existência fique vinculada à temporalidade e não mais à essência. Dito de outro modo, a identidade passa a ser pensada enquanto reflexividade e memória e não mais como substância. A consciência volta-se sobre si mesma, o tempo todo, a cada instante, e faz desse continuum uma sucessão de memórias encadeadas de modo coerente e sempre atribuídas a uma mesma identidade.
Já a noção de homem não é construída a partir da consciência, nem da palavra que exterioriza o pensamento, nem é suficientemente descrita como ser pensante e racional, que é a definição clássica. O homem de Locke é um animal com uma certa forma corporal. Essa forma corporal humana é que determina o que é o homem. Mesmo que esse animal com a forma reconhecidamente humana não tenha mais razão que um gato ou um papagaio, ele ainda continuará sendo um homem. E o contrário, se um papagaio ou um gato filosofassem ou discorressem muito bem sobre determinado objeto, ainda sim continuariam sendo apenas um papagaio ou um gato muito esperto (LOCKE, Livro II, Cap. XXVII, § 8).
Para ilustrar o argumento, Locke apresenta a história do papagaio brasileiro do príncipe holandês Maurício de Nassau, contada a ele por um interlocutor e não diretamente pelo nobre senhor.
Segundo o relato, Maurício de Nassau, no período em que foi governador no Brasil, conhecera um velho papagaio que falava muito bem, respondia a todas as perguntas que lhe eram feitas de modo coerente e, aparentemente, tinha uma capacidade racional bastante sofisticada. Nas palavras de Locke, esse velho papagaio não falava a língua holandesa, mas a “língua brasileira”. Como Nassau não compreendia a língua do papagaio, fez-se acompanhar de dois intérpretes, um holandês que falava a “língua brasileira” e um brasileiro que falava a língua holandesa. Desse modo, o holandês pôde atestar com segurança a coerência do discurso da sábia ave.
Qual é o ponto de Locke nesta história?
Ele continua após o relato afirmando que ambos, o nobre holandês e o seu interlocutor, contavam a história e sempre atribuíam a capacidade excepcional de fala a um papagaio, e não a um homem. Tal observação foi o suficiente para Locke concluir que a definição de homem estava marcada pela forma humana de seu corpo. Portanto, a consciência de si, a expressão da racionalidade, o pensamento e a linguagem, se não estiverem associadas a um corpo humano, a criatura com todas essas capacidades, na definição de Locke, não será um homem.
Difícil concordar com Locke quando se tem como características mais marcantes da humanidade justamente aquelas de natureza intelectual. A identidade humana está tão marcada pelo pensamento e pela capacidade de transformar o mundo a partir das abstrações por ele criadas que a questão da forma não parece relevante.
Não se trata de confundir as noções que Locke quer diferenciar. O homem de Locke, do Ensaio, é marcado pelo aspecto biológico e por este se diferencia. Pouco importa que um asno, um dos animais mais presentes na história do homem, venha a proferir os mais belos discursos que já se ouviu: ele jamais será um homem e perecerá asno, pois a sua forma corporal não lembra a de um homem.
Mas não deveriam ser a linguagem e o discernimento os elementos diferenciadores do homem?
Não, estas são características atribuíveis a um constructo, uma obra do pensamento que é a noção de pessoa. Pensamento, linguagem, discernimento, reflexividade e consciência somente são possíveis enquanto reflexão de uma identidade. Não há tais elementos senão no pensamento que se volta sobre si mesmo e que reconhece a alteridade apenas de modo seletivo, ou seja, apenas reconhece a mesma reflexividade naqueles que lhe parecem semelhantes. Narcisicamente, o constructo que possibilita a identidade pessoal só vê o homem naquilo que com ele se parece.
E o papagaio de Nassau? E se ele tivesse recitado o poema de Camões? Não superaria ele o constructo? E se ele estivesse aqui hoje, operando um notebook e se comunicando com você usando uma identidade falsa? Ele continuaria um bípede emplumado. Sua forma é inadequada para uma pessoa.

Bibliografia indicada:
LOCKE, John. An Essay on Human Understanding, 1690.
SIMHA, André. A Consciência. Do Corpo ao Sujeito. Petrópolis: Vozes, 2009.