sábado, 7 de agosto de 2010

IV – Generalidade e noção de sentido: como o pensamento oscila entre o particular e geral para assegurar a coerência

Marco Antonio Schmitt

O avanço das ideias filosóficas se deve muito às intuições de pensadores que, de alguma maneira, reformularam noções já conhecidas, da Lógica, ou da Metafísica, ou da Ética, e assim deixaram a sua marca na longa e fértil história da Filosofia. Intuições que, a partir da sua enunciação inicial, passaram a ser objeto de longas análises de justificação e debate. Henri Bergson, por exemplo, soube bem avaliar a importância desses novos pontos de partida na sua “Intuição Filosófica” (Ed. Colibri, Lisboa, 1994).

Este registro é feito para dizer, primeiro, que o presente ensaio, assim como os que o antecederam sobre as categorias fundamentais do pensamento, constitui-se de uma série de proposições absolutamente intuitivas, as quais serão devidamente relacionadas para, mais adiante, terem a sua fundamentação ampliada.

Segundo, para dizer que a intuição é uma espécie da categoria fundamental do começo. Se pensar é pensar um ponto de partida, a intuição é o que se poderia assegurar como um começo genuíno. O movimento criado a partir dela é totalmente novo e incerto, já que ele não encontra justificação imediata em algum ponto de experiência anterior.

Esse ponto de partida intuitivo é possível de ser descrito como uma imagem de totalidade. A intuição se apresenta tal como um objeto observado do alto ou à distância. A imagem é clara e, aparentemente, é coerente, faz sentido.

À medida que o movimento do ato de pensar se aproxima dessa imagem preliminar, há necessidade de elementos novos que possibilitem a continuidade da coerência. Quando algum ponto componente se torna obscuro, o entendimento estanca seu andar e retorna ao ponto de coerência anterior. O movimento se repete e o ponto desconhecido é reavaliado. Há uma rede de sucessivas validações que permitem, sempre tendo a busca da coerência como vetor, ao movimento avançar e entender.

As validações são a forma assumida pelos pontos de justificação. Tendo uma referência inicial sempre pressuposta, o ato de pensar se concentra sobre um novo ponto da intuição assumida e opta por uma de duas possibilidades: aceita ou não aceita, justifica ou não justifica. Quando o ponto de justificação se consolida, o movimento avança. Deixa-se para trás um novo ponto de começo.

Dito de outra maneira, à medida que esse avanço ocorre, o ato de pensar se orienta da generalidade para o particular e isso traz como ônus uma progressiva dificuldade para manter a relação de sentido. As menores partes analisadas isoladamente carecem de sentido e, como isso não é algo que o ato de pensar possa integrar na sua rotina, a solução encontrada é o retorno e a repetição. O ponto de partida anterior deve ser retomado e o percurso novamente feito. É provável que se encontre um limite do qual o movimento não avance mais, por faltar em definitivo a garantia de coerência futura, dadas certas condições subjetivas.

O modo como as pesquisas científicas se desenvolvem em certas áreas é semelhante à descrição feita anteriormente. A análise da matéria e das suas partículas elementares é um exemplo. A cada passo dado pelos cientistas na direção de encontrar o que há de mais fundamental na matéria, são descobertas partículas cada vez menores e mais instáveis, muito diferentes da imagem inicial distanciada e ordinária de algum objeto. Adentrar o mundo dessas pequenas partes, que já se sabe estarem em constante e rápido movimento, contrastando com a firmeza externa dos objetos vistos por nós sem o auxílio de microscópios, seria desastroso para a nossa compreensão, pois ela não é compatível com a particularidade extrema.

O ato de pensar se mantém, ordinariamente, voltado para uma coerência só encontrada no mundo das macrorrealidades. Quando o movimento avança em direção ao particular, haverá um ponto de justificação em que se dará um limite. O sentido acaba ali.

Todavia, a realidade encontrada além daquele limite de coerência não fica totalmente incompreensível. Há uma série de medidas compensatórias que constroem uma linha artificial de coerência, a partir de outra categoria importante: a analogia. Se as microrrealidades, como no caso das partículas elementares da matéria, não encontram um sentido natural associado, a analogia permite que se atribua a coerência por soluções matemáticas, por exemplo.

Enfim, o ato de pensar em movimento, quando direcionado do geral para o particular, avança na medida em que o sentido é assegurado em cada novo ponto demarcado e justificado. A garantia de sentido aqui considerada é aquela dita conatural ao pensamento, que se aproxima facilmente de uma visão geral e que vai perdendo força na medida em que se depara com microrrealidades. Para que estas pequenas realidades possam também ser conhecidas, o pensamento se utilizada da analogia e com ela edifica uma espécie de sentido artificial.

Psicanálise cura ?

Autor: LUIZ ERNESTO CABRAL PELLANDA *


* MÉDICO E PSICANALISTA, MEMBRO EFETIVO DA SOCIEDADE DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE (SPPA)

Contribuição da teoria psicanalítica, em cem anos de prática, ultrapassa função terapêutica

Mas, “cura”, o que é, mesmo? Quando se tem uma infecção é fácil dizer quando ocorre a cura: esbatem-se os sintomas, exames clínicos e laboratoriais retornam a seus níveis de normalidade. Pronto. Quando um osso se quebra, também: depois de imobilizado, o osso cicatriza, se refaz até com reforço local e voltamos a usá-lo como antes. Quem já quebrou uma perna ou um braço, sabe bem disso. Minha avó contava que uma vez, numa fazenda, um queixada abriu a barriga duma menina com as presas, botando as tripas dela para fora. Uma tia lavou tudo com salmoura, botou pra dentro e costurou com agulha de fechar saco e linha grossa. Que essa menina se curou prova o fato de que anos depois casou e teve filhos...

Mas, o que “cura” a psicanálise? Esta é outra história... porque aqui os critérios já não são tão simples. Qual “doente” procura um psicanalista? Falo pelos que me procuraram ao longo destes 50 anos de clínica: todos estavam sofrendo muito, sentindo-se sem rumo ou desamparados, depois de terem ouvido mil conselhos de amigos, pseudo-amigos, inimigos, curandeiros, médicos bem intencionados e, alguns, até nem tanto. Sempre fui a última esperança para eles. Um chegou a me dizer: “Se contigo não der certo, não tenho mais a quem recorrer: dou um tiro nos miolos.” Que responsabilidade! Menos mal que 20 anos depois ainda tive notícias dele e seguia vivo e disposto. Curou-se? Quem mais pode dizer isso senão ele mesmo? Por onde andará para que se possa perguntar-lhe? Um pequeno porém: será que tenho o direito de ir em busca dele para fazer essa pergunta? A nossa relação profissional terminou. Como posso garantir que minha pergunta não seja uma intromissão em sua vida, remoendo restos de transferência que possam estar ainda por resolver? A resposta para esta questão, para mim, é clara: Há um impedimento ético de procurá-lo e a qualquer outro, de modo que essa pesquisa “científica” está, desde logo, prejudicada. Mais uma questão: nos idos de 1900, Freud necessitou grande disposição e energia para demonstrar a existência do inconsciente e da possibilidade de que “pensamentos inconscientes” pudessem influir na conduta ou nos sentimentos conscientes. Naquele tempo só o que era consciente era considerado “mental”. Hoje, a equação se inverteu e estamos lidando para tentar saber como surge a consciência.

Pesquisa em psicanálise não pode seguir a mesma receita linear das ciências básicas, e, mesmo estas, já estão sendo obrigadas a admitir que nem tudo são certezas e que aquilo que a Física Quântica descobriu está contaminando todo o espectro das ciências em geral: a complexidade é a regra e não a exceção. Isto vale, e quanto, para a Biologia: somos seres extremamente complexos que vivemos em sincronia com nosso meio ambiente, nele influindo e por ele sendo influídos.

Corpo e mente não são duas entidades que se relacionam, mas duas expressões de uma mesma substância. Descartes dizia que “saber como uma mente imaterial movimenta um braço material é um problema de Deus, não nosso”. Mas se entendemos tratar-se de uma única entidade, então essa questão deixa de ter sentido, como nos mostra Humberto Maturana. É ele também quem nos chama a atenção para o fato de que o cérebro é uma rede neural fechada e que se comunica com o exterior apenas pelos “cinco” sentidos e pelas placas motoras nos músculos e glândulas. Isto implica em afirmar que não há “transmissão de informação”, mas sim cada um de nós reconstrói dentro dessa rede interna isso que chamamos de informação. O estímulo externo não determina a resposta do ser vivo, mas é sua estrutura que determina qual a consequência. O meu exemplo preferido é o da luz solar que “causa” fotossíntese se incide em uma folha verde ou escurece minha pele (ou causa uma queimadura, se a deixo exposta por tempo demasiado): a luz é a mesma, o efeito depende da estrutura do ser vivo, daí “causa” estar entre aspas porque, na verdade, não “causa” nada... Mas a luz “causou” modificações na estrutura e aí um dado importante: podemos modificar nossa própria estrutura buscando um melhor acoplamento com nosso meio. Pensar sobre nós mesmos, nosso modo de viver pode causar uma revisão de nossa estrutura. É isso que a psicanálise faz.

Voltando ao nosso foco: quando considerar que a psicanálise “curou” alguém? Como não posso perguntar aos meus antigos analisandos, pergunto a mim mesmo: eu me “curei” na minha longa análise? Se formos levar em conta apenas as razões imediatas de eu ter procurado análise, a resposta é “sim”: eu parei de fumar, parei de me preocupar com bobagens, completei minha formação como Psicanalista na SPPA, achei uma companheira muito especial, casei durante a análise, e fui feliz desde então. Tive três filhos e agora tenho dois netos, sendo que a Marina eu ganhei de aniversário quando fiz 60 anos. Nunca mais tive ansiedade ou angústia? Evidentemente que tive, mas certamente me senti melhor aparelhado para lidar com essas situações, inclusive com as perdas inevitáveis que a vida nos traz. Que mais posso querer? O que eu ainda quero é poder continuar ajudando as pessoas que me procuram para uma análise, se for possível, ou para uma “supervisão” da auto-análise que cada um continua fazendo enquanto está vivo.

Mas há uma questão básica: uma psicanálise “standard” corresponde a ter um “personal advisor” de alta qualificação acadêmica disponível por quatro ou cinco horas por semana, durante anos. Isso necessariamente tem um custo. Mas o importante é que essa não é a única forma de a psicanálise contribuir para a humanidade, sequer a mais importante. A gama de conhecimentos acumulados nestes mais de cem anos modificou o modo como nos relacionamos. As psicoterapias todas, mesmo as ditas “comportamentais” e ainda que o neguem, bebem na fonte que Freud inaugurou sem fanfarras.

(Texto publicado na Zero Hora de 03-04-2010)