sexta-feira, 16 de julho de 2010

I - Autorreferência e inquietação: por que situações autorreferenciais (não) são conaturais ao pensamento

Marco Antonio Schmitt

Este ensaio não é o resultado de uma pesquisa bibliográfica. Ele também não advém de observações realizadas num laboratório de pesquisas. Não é também a descrição de um sonho. Não é a descrição de um fato observado nas ruas. Não é uma apresentação do próprio autor. Não é propriamente um ensaio.

Afora o excesso de “nãos” utilizados, o parágrafo anterior causa uma perplexidade imediata ao pensamento por estar descrevendo uma contradição. Ou se trata de um ensaio, ou não se trata de um ensaio.

A perplexidade, neste caso em especial, é uma forma de recusa. O pensamento não assimila, não aceita, não torna viável a frase que faz do ensaio um não-ensaio. É possível dizer, portanto, que a contradição não é conatural à estrutura lógica que orienta ordinariamente o ato de pensar.

Há, também, outra situação que causa um efeito semelhante à anterior que é a circularidade ou autorreferência. Pensar sobre si mesmo, reconhecer-se num espelho ou, simplesmente, andar em círculos, são situações que desordinarizam o pensamento. Qual a razão disso? Aparentemente, estas também são situações que não podem ser consideradas conaturais ao modo ordinário de pensar.

Para melhor perceber o que se está tentando dizer, vou relatar três situações que ilustram tais impressões.

A primeira delas é contada por Douglas Hofstadter em seu I am a Strange Loop, e que em algum momento do meu passado já havia sido por mim imaginada.

Hofstadter conta que, ainda nos de 1970, seus pais resolveram comprar uma câmera de vídeo. Chegando à loja, lá estavam instalados vários aparelhos de televisão e, num deles, estava conectada uma câmera direcionada ao público. Dessa forma, os consumidores conseguiam se ver na televisão e ter uma noção do funcionamento do aparelho.

A câmera podia ser direcionada em várias direções, inclusive para o próprio televisor que transmitia as imagens que captava. Com isso, restaria fechado o circuito referencial: a câmera passaria a captar a imagem da própria televisão que reproduz as cenas por ela captadas. Receoso do que poderia acontecer com tal movimento, o autor perguntou ao atendente da loja se autorizava fazê-lo. A resposta foi rápida e nervosa: não, não faça isso, assim você danificará a câmera. Mais tarde, já em casa, Hofstadter fez o que o atendente havia proibido e verificou que, como era de se esperar, nada de indesejável aconteceu.

A segunda situação de autorreferência é parte do filme “Quero ser John Malkovich”, no qual o famoso ator interpreta a si mesmo, embora não seja essa a circularidade mais interessante.

Os personagens da trama encontram um misterioso túnel atrás de alguns arquivos de aço. Quando um deles vai verificar para onde este túnel levava, descobre que ele acaba na consciência do ator John Malkovich e permanece lá por alguns minutos, sendo que após é jogado na beira de uma autoestrada.

Essa situação passa a ser explorada economicamente, oferecendo-se mediante pagamento a oportunidade a qualquer pessoa ser John Malkovich por alguns minutos, vendo o que ele vê, fazendo o que ele faz, assumindo, enfim, a sua personalidade temporariamente.

Quando essa sucessão de intrusos na consciência começa a perturbar e mesmo a interferir no seu modo de ser, Malkovich investiga e descobre a existência do túnel e entra nele também. É neste instante que surgem as perturbadoras imagens da autorreferência.

O mundo de John Malkovich visto por ele em-si-mesmado é formado por homens e mulheres com rostos iguais ao dele. Todos falam uma mesma língua, cujas frases são diferentes entonações da palavra “Malkovich”. O cardápio oferece opções de comida e bebida, todas nominadas “Malkovich”. Há apenas um único John que vê tudo isso, fica ofegante e sai correndo, procurando uma saída desse mundo indiferenciado.

A terceira situação é um fato curioso que aconteceu na minha infância.

O filho de um vizinho, após um grave acidente automobilístico, sofrera danos irreparáveis à sua integridade física e mental. Um dos efeitos mais visíveis por todos que o conheceram foram as intermináveis caminhadas que passou a fazer. Saía dos fundos da casa, dirigia-se até a via pública por uma passagem entre arbustos, estendia-se por mais alguns metros, dava meia-volta e retornava aos fundos. Mesmo em períodos de muito frio, ou de chuva, ou de intenso calor, essa cena se repetia. Talvez com menor frequência nestas épocas, mas não havia longas interrupções. O trajeto do vizinho caminhante era levemente circular, já que não voltava sobre os mesmos passos, nem o fazia de costas. Nunca se soube as exatas razões para que ele agisse daquela forma.

Eu ficava imaginando uma conversa com aquela estranha pessoa, na qual a primeira coisa que eu lhe teria perguntado seria “por que você está caminhando em círculos o dia todo há tanto tempo?” Imaginava, também, que ele não teria uma resposta a dar, afinal a sua capacidade de pensar e agir sofria de uma deficiência que não lhe permitiria dizer algo sobre si. Por outro lado, se houvesse uma resposta possível, ela poderia ter sido “caminho desse modo por recomendação médica, para melhorar a minha forma física e, assim, acelerar a minha recuperação”. Mas isso continuaria não dando as razões para aquele errático caminhar em círculo.

Na primeira situação, da câmera de vídeo, o vendedor de aparelhos eletrônicos reagiu de modo contundente para impedir que Hofstadter a direcionasse para o televisor e, assim, fechasse o circuito de imagens autorreferenciais. Alguma razão técnica? Não, uma falsa razão técnica que velava uma intuição: autorreferenciar a imagem estraga a câmera.

Na segunda situação, a autoconsciência vista por ela mesma, voltando-se sobre si, produziu um mundo aberrante e desconfortável para Malkovich. Um mundo em que a indiferenciação é a regra e a consciência se perde dentro de si mesma.

Na terceira situação, a repetição da caminhada em círculos sem motivo aparente ou declarado, intriga e assusta. Seria possível dela tirar alguma conclusão que não fosse meramente especulativa?

A questão me parece ser esta: como estes movimentos autorreferenciais são assimilados pelo pensamento? Eles são, à primeira vista, inquietantes, porque não há como prever exatamente o seu resultado – para onde eles conduzem o sujeito – ou porque não se encontra sentido naquele movimento.

Em outras palavras, movimentos autorreferenciais não são conaturais ao pensamento. O movimento do ato de pensar não é, ordinariamente, circular ou autorreferente. Ao menos, ele não se percebe assim.

No momento em que ele se depara com situações que assim se parecem, ele as recusa enquanto formas válidas. Supera a recusa, volta-se sobre si e elabora um modo de interpretá-las. Com isso, recupera o sentido e volta a se conectar com o mundo que o cerca. E aqui um ponto que merecerá investigação a posteriori: a superação e a elaboração passam pela avaliação das estruturas lógicas. Se a autorreferência não for mais interpretada como uma contradição, o processo de elaboração foi efetivo. Falhando a elaboração, o pensamento retoma a superação e segue numa relação circular até que um elemento novo apague o que pode ser chamado de nó.

Como tais questões estão reportadas em estudos já realizados pela Psicologia e pela Filosofia da Mente é o que pretendo tratar nos próximos ensaios:

a) qual a relação entre regras lógicas e pensamento;

b) o que são situações conaturais ao pensamento;

c) a autorreferência é conatural ao modo de pensar, embora este não consiga assimilá-la naturalmente em situações que lhe são oferecidas como objetos;

d) a consciência é um modo de autorreferência do pensamento que vela a sua estrutura formal;

e) falsas intuições limitam o pensamento e podem formar barreiras não-racionais de assimilação da realidade.

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