sábado, 7 de agosto de 2010

Psicanálise cura ?

Autor: LUIZ ERNESTO CABRAL PELLANDA *


* MÉDICO E PSICANALISTA, MEMBRO EFETIVO DA SOCIEDADE DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE (SPPA)

Contribuição da teoria psicanalítica, em cem anos de prática, ultrapassa função terapêutica

Mas, “cura”, o que é, mesmo? Quando se tem uma infecção é fácil dizer quando ocorre a cura: esbatem-se os sintomas, exames clínicos e laboratoriais retornam a seus níveis de normalidade. Pronto. Quando um osso se quebra, também: depois de imobilizado, o osso cicatriza, se refaz até com reforço local e voltamos a usá-lo como antes. Quem já quebrou uma perna ou um braço, sabe bem disso. Minha avó contava que uma vez, numa fazenda, um queixada abriu a barriga duma menina com as presas, botando as tripas dela para fora. Uma tia lavou tudo com salmoura, botou pra dentro e costurou com agulha de fechar saco e linha grossa. Que essa menina se curou prova o fato de que anos depois casou e teve filhos...

Mas, o que “cura” a psicanálise? Esta é outra história... porque aqui os critérios já não são tão simples. Qual “doente” procura um psicanalista? Falo pelos que me procuraram ao longo destes 50 anos de clínica: todos estavam sofrendo muito, sentindo-se sem rumo ou desamparados, depois de terem ouvido mil conselhos de amigos, pseudo-amigos, inimigos, curandeiros, médicos bem intencionados e, alguns, até nem tanto. Sempre fui a última esperança para eles. Um chegou a me dizer: “Se contigo não der certo, não tenho mais a quem recorrer: dou um tiro nos miolos.” Que responsabilidade! Menos mal que 20 anos depois ainda tive notícias dele e seguia vivo e disposto. Curou-se? Quem mais pode dizer isso senão ele mesmo? Por onde andará para que se possa perguntar-lhe? Um pequeno porém: será que tenho o direito de ir em busca dele para fazer essa pergunta? A nossa relação profissional terminou. Como posso garantir que minha pergunta não seja uma intromissão em sua vida, remoendo restos de transferência que possam estar ainda por resolver? A resposta para esta questão, para mim, é clara: Há um impedimento ético de procurá-lo e a qualquer outro, de modo que essa pesquisa “científica” está, desde logo, prejudicada. Mais uma questão: nos idos de 1900, Freud necessitou grande disposição e energia para demonstrar a existência do inconsciente e da possibilidade de que “pensamentos inconscientes” pudessem influir na conduta ou nos sentimentos conscientes. Naquele tempo só o que era consciente era considerado “mental”. Hoje, a equação se inverteu e estamos lidando para tentar saber como surge a consciência.

Pesquisa em psicanálise não pode seguir a mesma receita linear das ciências básicas, e, mesmo estas, já estão sendo obrigadas a admitir que nem tudo são certezas e que aquilo que a Física Quântica descobriu está contaminando todo o espectro das ciências em geral: a complexidade é a regra e não a exceção. Isto vale, e quanto, para a Biologia: somos seres extremamente complexos que vivemos em sincronia com nosso meio ambiente, nele influindo e por ele sendo influídos.

Corpo e mente não são duas entidades que se relacionam, mas duas expressões de uma mesma substância. Descartes dizia que “saber como uma mente imaterial movimenta um braço material é um problema de Deus, não nosso”. Mas se entendemos tratar-se de uma única entidade, então essa questão deixa de ter sentido, como nos mostra Humberto Maturana. É ele também quem nos chama a atenção para o fato de que o cérebro é uma rede neural fechada e que se comunica com o exterior apenas pelos “cinco” sentidos e pelas placas motoras nos músculos e glândulas. Isto implica em afirmar que não há “transmissão de informação”, mas sim cada um de nós reconstrói dentro dessa rede interna isso que chamamos de informação. O estímulo externo não determina a resposta do ser vivo, mas é sua estrutura que determina qual a consequência. O meu exemplo preferido é o da luz solar que “causa” fotossíntese se incide em uma folha verde ou escurece minha pele (ou causa uma queimadura, se a deixo exposta por tempo demasiado): a luz é a mesma, o efeito depende da estrutura do ser vivo, daí “causa” estar entre aspas porque, na verdade, não “causa” nada... Mas a luz “causou” modificações na estrutura e aí um dado importante: podemos modificar nossa própria estrutura buscando um melhor acoplamento com nosso meio. Pensar sobre nós mesmos, nosso modo de viver pode causar uma revisão de nossa estrutura. É isso que a psicanálise faz.

Voltando ao nosso foco: quando considerar que a psicanálise “curou” alguém? Como não posso perguntar aos meus antigos analisandos, pergunto a mim mesmo: eu me “curei” na minha longa análise? Se formos levar em conta apenas as razões imediatas de eu ter procurado análise, a resposta é “sim”: eu parei de fumar, parei de me preocupar com bobagens, completei minha formação como Psicanalista na SPPA, achei uma companheira muito especial, casei durante a análise, e fui feliz desde então. Tive três filhos e agora tenho dois netos, sendo que a Marina eu ganhei de aniversário quando fiz 60 anos. Nunca mais tive ansiedade ou angústia? Evidentemente que tive, mas certamente me senti melhor aparelhado para lidar com essas situações, inclusive com as perdas inevitáveis que a vida nos traz. Que mais posso querer? O que eu ainda quero é poder continuar ajudando as pessoas que me procuram para uma análise, se for possível, ou para uma “supervisão” da auto-análise que cada um continua fazendo enquanto está vivo.

Mas há uma questão básica: uma psicanálise “standard” corresponde a ter um “personal advisor” de alta qualificação acadêmica disponível por quatro ou cinco horas por semana, durante anos. Isso necessariamente tem um custo. Mas o importante é que essa não é a única forma de a psicanálise contribuir para a humanidade, sequer a mais importante. A gama de conhecimentos acumulados nestes mais de cem anos modificou o modo como nos relacionamos. As psicoterapias todas, mesmo as ditas “comportamentais” e ainda que o neguem, bebem na fonte que Freud inaugurou sem fanfarras.

(Texto publicado na Zero Hora de 03-04-2010)

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