terça-feira, 8 de junho de 2010

A Psicanálise na Escola de Frankfurt

08-06-2010

Na semana passada terminei este trabalho para uma disciplina de História da Filosofia Contemporânea na PUC-RS.

Foi a primeira vez que escrevi algo sobre o pensamento de Freud relacionado com a Filosofia e, neste caso, sobre os ensaios dos integrantes da Escola de Frankfurt e as suas tentativas de aproximar o pensamento de Marx com a Psicanálise.

Deixarei este texto como a postagem inaugural do blog, o qual é um espaço que gostaria de dividir especialmente com a minha amada CLAUDIA ANDROVANDI e suas reflexões sobre Freud, e com todos os interessados em debater temas da Filosofia Contemporânea e da Psicanálise, não necessariamente vinculando ambos os conhecimentos.

Teoria Crítica e Psicanálise
Marco Antonio Schmitt

Introdução

A Psicanálise e a Teoria Crítica do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, ou da Escola de Frankfurt, desde sempre tiveram uma relação muito próxima. Tal proximidade pode ser descrita de vários modos, desde sob o aspecto temático da pesquisa feita pelo Instituto no qual os temas psicanalíticos – entendidos essencialmente como o pensamento freudiano – sempre estiveram em destaque, como pelo relacionamento muito próximo dos membros da Escola com os psicanalistas da época.
O principal objetivo dos frankfurteanos, como Adorno e Horkheimer, era integrar o pensamento de Freud ao de Hegel, Marx e Weber. E Freud, neste contexto específico, foi sempre levado para fazer companhia a Marx. A proposta dos idealizadores do instituto era a de um programa interdisciplinar e a Psicanálise tinha seu espaço reservado também por essa característica. O Instituto de Pesquisa Social foi, certamente, a primeira instituição a levar a sério o freudismo em pesquisas teóricas.
Qual era o objetivo dos teóricos com a obra de Freud? Numa interpretação possível, a Psicanálise era considerada uma disciplina fundamental para complementar ou corrigir a teoria marxista no que diz respeito à redução que esta fazia do reino psicológico a fatores socioeconômicos.
Outra explicação possível era a tentativa de integrar um importante movimento cultural com uma política de esquerda, apesar da Psicanálise receber designações pouco amistosas da esquerda em geral, como a de um produto da burguesia europeia decadente. Atribui-se tal integração cultural à posição desempenhada por Adorno. Mesmo sendo Freud um representante do conservadorismo europeu no final do século XIX, era inegável o valor da Psicanálise para a vanguarda cultural ao tempo da formação do Instituto de Pesquisa Social.
Também é possível dizer que o pensamento psicanalítico fora absorvido pelos representantes da Escola de Frankfurt como uma forma de fugir da ortodoxia do marxismo tradicional. Mais diretamente ainda, se esta última justificação não era suficientemente verificável, o interesse pessoal de um dos principais representantes do Instituto de Pesquisa Social, Horkheimer, por Freud já se manifestava na década de 20.
Havia também uma curiosa intimidade dos membros do Instituto com os psicanalistas europeus da época. O Instituto Psicanalítico de Frankfurt, inaugurado em 1929, dividia o mesmo edifício e as mesmas salas de aula do Instituto de Pesquisa Social. A própria fundação desse Instituto em Frankfurt deve-se inicialmente a Horkheimer, paciente do psiquiatra Karl Landauer, que havia sido aluno de Freud, com quem se tratava por conta de uma dificuldade de expor sem ter um texto previamente preparado. Horkheimer incentivou Landauer a formar o Instituto e veio a integrar a própria direção do mesmo. E, posteriormente, o próprio Freud veio a agradecer diretamente a Horkheimer o incentivo por meio de cartas.
Entre os nomes mais destacados nas investigações sobre Freud e sua integração com Marx está Erich Fromm, psicanalista e membro de ambos os institutos. Suas obras mais citadas são “O Conceito de Homem em Marx” e “Meu encontro com Marx e Freud”. Fromm também foi o responsável por disseminar e ensinar os conceitos psicanalíticos entre os membros do Instituto de Pesquisa Social.
Horkheimer e Adorno, também na sua obra mais conhecida, “Dialética do Esclarecimento”, utilizam-se da Psicanálise para explicar o desenvolvimento individual e coletivo, comentando as viagens de Ulisses.
E o quarto integrante de destaque na utilização das teses de Freud é Herbert Marcuse, especialmente em duas obras, “Eros e Civilização” e “Ideologia da sociedade industrial – o homem unidimensional”.
Cada um em sua obra adotou e adaptou parcialmente o pensamento de Marx e Freud ao seu modo, ora relativizando as teses freudianas com marxismo, ora impugnando o marxismo com a Psicanálise.
I – Os freudo-marxistas da fase alemã do Instituto de Pesquisa Social – 1923-33 – Erich Fromm

A integração da Psicanálise com o pensamento marxista era vista com simpatia nos ambientes de esquerda do início do século XX, ainda antes da fundação do Instituto de Pesquisa Social em 1923, ou mesmo fora dos seus estritos círculos.
Na primeira fase da Revolução Russa, de 1918, havia uma grande simpatia pela Psicanálise e pelas ideias de Freud na União Soviética. Suas obras foram traduzidas e consultórios psicanalíticos foram inaugurados em Moscou. Porém, com a morte de Lenin essas experiências culturais cessaram, Freud foi transformado em tabu, qualificado como um representante da burguesia decadente combatida pelos revolucionários e Pavlov tomou o seu lugar. A esquerda de modo geral passou a adotar posição refratária também e a aproximação freudo-marxista cessou. Wilhelm Reich foi um dos autores mais originais nesse tema no período entreguerras e sofreu duplamente os efeitos da mudança de posicionamento: foi ridicularizado, expulso do partido comunista e do movimento psicanalítico.
A principal objeção feita pelos ortodoxos esquerdistas era quanto ao pessimismo de Freud em relação às possibilidades de mudança social, completamente incompatível com as pretensões revolucionárias marxistas. Se para Marx o passado está prenhe do futuro e a classe operária é a parteira, para Freud o futuro está prenhe do passado e somente um médico ou a sorte pode nos salvar. A revolução não salvaria, pois seria apenas uma repetição da rebelião prototípica contra o pai, e estaria condenada ao fracasso e a sucessivas repetições do mesmo evento.
Essa reorientação foi exportada para a III Internacional Socialista e a Psicanálise passou a sofrer reiterados ataques por parte de publicações a ela vinculadas. Alguns ataques referiam, por exemplo, que ela era uma “charlatanice”, uma fantasia, produto de uma pequena burguesia decadente e preocupada exclusivamente com a sexualidade.
Os marxistas alemães ignoraram as críticas e continuaram se utilizando das teses freudianas. Por isso, na Alemanha dos anos 20 e 30 o conteúdo freudo-marxista continuou sendo difundido e utilizado numa tentativa de esclarecer a distância que havia entre a consciência política e as condições objetivas. A intenção era reificar e naturalizar a Psicanálise até as últimas consequências. Siegfried Bernfeld e Otto Fenichel são dois expoentes dessas ideias.
Mas qual era, afinal, a finalidade dos estudos freudo-marxistas?
Dois importantes fatos históricos foram o pano de fundo para as tentativas de juntar Freud com Marx – a revolução bolchevista e a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha.
Tentava-se com a Psicanálise entender a ação irracional da classe operária, que elegeu Hindenburg Presidente da Alemanha e mais tarde votou em Hitler. O marxismo mostrava-se insuficiente para explicar tais situações.
A compreensão do enigma parecia estar na Psicanálise, esta tida como uma doutrina do funcionamento psíquico da ação irracional. A ideologia, que movia as classes no sentido dessa ação irracional, poderia estar tirando sua persuasão de mecanismos afetivos, não submetidos ao crivo da racionalidade. As categorias psicanalíticas poderiam contribuir, segundo tais teorias, a explicar como a ideologia estava se movimentando.
A pergunta a ser respondida era a seguinte: como é possível que a maioria oprimida aceite sua opressão pela minoria? Era o problema do complexo de Hindemburg – a aceitação voluntária da opressão, expressão atribuída a Alexander (ROUANET, 1989, p. 21).
Para Bernfeld e Fenichel, a ação contrária aos interesses da classe a que pertenciam era causada pela ideologia burguesa, descontados aí fatores como a educação deficitária e a opressão material.
Outra observação que faz da Psicanálise um ponto de referência importante junto com as ideias marxistas é a explicação do comportamento da classe operária em relação à autoridade. A explicação estaria num infantilismo psíquico que leva a uma espécie de respeito cego pela autoridade. Segundo Rouanet, o respeito infantil por pessoas biograficamente importantes é extrapolado para entidades socialmente poderosas. Essa transferência é inconsciente e como tal só pode ser resolvida pela Psicanálise (ROUANET, 1989, p. 22).
Também se investiga o modo como a ideologia é interiorizada pelo indivíduo. Ela se enraíza no curso do processo de socialização, através das sucessivas privações pulsionais que a instância familiar e, posteriormente, outras instâncias vão impondo ao indivíduo. O processo pelo qual os diferentes objetos do amor vão sendo abandonados, no curso do desenvolvimento psicossexual, em que o indivíduo transita da fase oral para a genital, é acompanhado, em cada caso, de prescrições e proscrições, de normas que correspondem a valores sociais em vigor.
O momento estratégico dessa evolução é alcançado quando surge na fase fálica, o conflito edipiano. Sua dissolução supõe, por um lado, a renúncia à mãe como objeto do amor, e por outro, a identificação com o pai.
Com a incorporação do pai, incorpora-se, ao mesmo tempo, o sistema de valores que o pai encarnava. Constitui-se o superego. A partir desse momento, a autoridade se internaliza. A força externa se torna desnecessária. Como os valores do pai são os valores da ordem social, deixa de haver contradição entre os objetivos do sistema de poder e os impulsos do indivíduo. A ideologia se torna intrapsíquica. Está concluído o longo processo de penetração da ideologia nas consciências individuais. (ROUANET, 1989, p. 23).
Estas são observações de autores que não integraram a Escola de Frankfurt, mas que preparam o ideário freudo-marxista que os defensores da Teoria Crítica iriam incorporar. O Instituto de Pesquisa Social surpreendeu a esquerda em seu tempo quando retomou as ideias de Freud, rechaçadas pela Internacional Comunista.
Erich Fromm é o principal expoente da reconciliação de Marx e Freud nos anos 20 e 30.
Fromm se utiliza das teses freudianas para analisar a ideologia. Para isso, afirma que o aparelho pulsional não tem apenas um caráter biológico, mas ele se forma também por influências externas. Ele é suscetível a influências do exterior, das condições econômicas.
Mas as condições psíquicas internas do indivíduo também são elementos que modelam a sua ideologia. Marx e Engels, segundo Fromm, tinham essa noção que relacionava a ideologia às condições econômicas externas, mas não dispunham de uma psicologia científica para explicar como isso ocorria. A Psicanálise deveria preencher essa lacuna.
E aqui se tem uma primeira observação que relaciona Marx e seu ideário a Freud. A Psicanálise é apontada como um importante instrumento para explicar o comportamento dito irracional - compreender as ideologias como produtos de interação entre um aparelho pulsional e as condições socioeconômicas (ROUANET, 1989, p. 51).
O freudo-marxismo faz uma ligação necessária entre a história do indivíduo e o contexto social em que está inserido. Defende uma determinação histórica do caráter do indivíduo ou de uma classe. Fromm chama isso de caráter social, a soma dos traços comuns de um grupo de indivíduos inseridos numa mesma situação social, numa mesma condição de classe.
O caráter social é um intermediário, pois ele está entre a estrutura socioeconômica e as ideias predominantes de uma sociedade. Os três níveis estão em constante relação de condicionamento: o caráter social está sob o influxo da estrutura socioeconômica e condiciona as ideias predominantes. Estas, influenciam o caráter social e, indiretamente, acabam afetando a estrutura socioeconômica (FROMM, 1975, p. 85).
O nacional-socialismo da época é o tema mais recorrente de análise dos freudo-marxistas. Segundo Fromm, as condições da época condicionavam um caráter social sadomasoquista, a base pulsional da personalidade autoritária.
É preciso sofrer e fazer sofrer, oprimir e ser oprimido, obedecer à autoridade e exercer a autoridade. Nessas relações que a personalidade sadomasoquista consegue se realizar libidinalmente.
Mas como fica a questão do ódio desenvolvido contra o agressor? Ele não pode ser exteriorizado, já que há uma relação de admiração com quem está agredindo, com quem está satisfazendo desejos de opressão. Nesse caso, o ódio é reprimido e canalizado para outra direção, para os mais fracos. Há um desprezo pela fraqueza humana, contraponto da admiração pela força.
Para o sadomasoquista agir significa viver a história como se ela fosse um destino. Sempre se deve obedecer aos superiores. Submeter-se ao destino é heroico para o sadomasoquista, segundo Fromm.
A autoridade messiânica, o Fuehrer, precisa ser explicada em termos psicanalíticos. Ele tem um carisma sui generis que não pode ser imitado, pois há uma distância entre ele e o governado. Não é possível haver uma identificação com o Fuehrer, como acontecia com as autoridades do capitalismo clássico – este era o seu pressuposto de aceitação como líder e disso se deduzia uma possibilidade de ascensão social. Contudo, não há a menor possibilidade de identificação, tal a característica diferenciada do líder. O melhor que o indivíduo pode fazer é participar, substitutivamente, da grandeza do regime que o Fuehrer representa, numa espécie de substituição narcisística. Nas palavras de Fromm (apud ROUANET, 1989, p. 58):

Essa gratificação substitutiva narcisística, obtida pela submissão masoquista a um Poder mais alto, não é alcançada apenas na relação com o líder, mas no fato de participar do brilho da Nação ou da Raça. Quanto mais o indivíduo valoriza a força e a grandeza do Poder do qual participa, maior sua gratificação.

O caráter social defendido por Fromm também tem sua explicação em termos psicanalíticos. Trata-se aqui de analisar as chamadas mediações sociopsicológicas.
Segundo Fromm, as estruturas psíquicas duráveis do indivíduo são criadas a partir da socialização familiar. São mediatizadas pela autoridade do pai.
Essas estruturas, por força da sua origem (familiar), representam os valores da ideologia instaurada.
O indivíduo, munido desse instrumental, irá querer o que é socialmente desejado e não irá querer o que socialmente não é desejado. Ele abster-se-á do que é socialmente reprimido.
O superego, que controla as ações individuais, não é suficiente. É preciso uma autoridade externa que o ajude. O mesmo superego dará as condições para que essa autoridade seja eficaz. Em alguns casos, o indivíduo chega a fantasiar que essa autoridade externa é o próprio superego ou a autoridade paterna, com as mesmas características. A autoridade é o pai, é ele quem dá os limites.
Mas há uma relação dialética entre as autoridades interna e externa. O indivíduo projeta, ou fantasia, que a autoridade externa tem as mesmas características que o superego e atribui-lhe os mesmos poderes. Novamente, essa autoridade externa assim fantasiada é introjetada e reforça o superego. Há uma alimentação contínua e recíproca entre as autoridades, baseada em fantasia ou projeção (ROUANET, 1989, pp. 59 e 60).
Fromm tenta historicizar as categorias freudianas. E aqui está o encontro entre Marx e Freud. O autor critica Freud por este não ter percebido que o processo de alimentação recíproca do superego e da autoridade externa serve para a manutenção da sociedade de classes. Ele não constituiria um pressuposto da cultura em geral, mas a condição inafastável para assegurar o poder da maioria sobre a minoria.
É neste ponto que Fromm relativiza o mecanismo pulsional. Primeiro, em sociedades mais desenvolvidas, o recalque necessário é proporcionalmente menor; segundo, as classes oprimidas são forçadas a um sacrifício pulsional mais importante. É possível prever, portanto, uma situação social em que o recalque se torne desnecessário.
Voltando ao caráter social, este se completa com a política cultural. A família, como instância psíquica da sociedade, é responsável pela produção das estruturas individuais idênticas, pela chamada socialização. Esta é uma primeira instância.
Depois da família, os aparelhos culturais – escola, as mídias de massa e outras instituições da sociedade civil – serão os complementos da entidade familiar, para reforçar aquilo que a família gerou. Em outras palavras, a família gera o caráter social, o qual se identifica com uma ideologia ossificada, a qual dá o suporte para que sejam recepcionadas as ideologias de outros aparelhos, que vão consolidar o mesmo caráter.
O que Fromm visava não era, todavia, unir ou fundir os pensamentos de Marx e Freud em síntese, mas refletir sobre ambos. Em sua obra de 1962 ficou registrado que suas últimas tentativas foram muito mais direcionadas para Marx, na busca de enfoques psicológicos antecipados por este em seus trabalhos, que diretamente para Freud. Também afirmou que o significado histórico da obra de Marx não era sequer comparável à de Freud.
Fromm também tenta delinear uma noção de Psicologia Social. Afirma que é um erro supor que as noções da Psicologia seriam aplicáveis apenas ao indivíduo, pois os indivíduos nunca estavam totalmente isolados do meio social. Essa Psicologia Social teria como tarefa compreender as condutas motivadas de modo inconsciente em termos de efeitos da subestrutura socioeconômica sobre os impulsos psíquicos básicos.
Ou ainda, à Psicologia Social cabe investigar a maneira como a estrutura libidinal – tida como combinação de impulsos humanos básicos e fatores sociais – atua como fator de coesão social e afeta a autoridade política.
Todavia, Fromm foi aos poucos perdendo seu entusiasmo por Freud e se afastando de alguns de seus postulados, o que transformou o seu pensamento, tornando-o um revisionista. Em 1935 publica um artigo no qual relata esse inconformismo. Considerava que Freud era um prisioneiro de seus valores conservadores e que a sua ênfase nas experiências da infância na análise eram, em verdade, uma forma de desviar a atenção da análise da pessoa propriamente dita. Distanciou-se, com isso, dos próprios membros do Instituto de Pesquisa Social e se afastou em 1939, passando a clinicar.
O Instituto de Pesquisa Social teve que encerrar suas atividades em 1933 com a chegada dos nazistas ao poder. Transferiu sua sede inicialmente para Genebra e depois para Nova Iorque. O retorno de Horkheimer e Adorno para Frankfurt com o Instituto ocorreu somente em 1949.
Em 1947, Horkheimer e Adorno escrevem uma das obras mais importantes da Teoria Crítica, que é a “Dialética do Esclarecimento”. A obra é amplamente permeada pelas teses psicanalíticas e é expressiva do novo período da Escola de Frankfurt após o final da Segunda Guerra.

II – Marx e Freud na Dialética do Esclarecimento – 1947 – Horkheimer, Adorno e Marcuse.

Adorno e Horkheimer voltaram-se para a Psicanálise com a finalidade de encontrar nela uma alternativa à racionalidade do pensamento, que até aquele momento, havia produzido o caos europeu sintetizado na Segunda Guerra.
Era preciso formular uma teoria não-racional, para não dizer irracional, que se contrapusesse à racionalidade doentia que se criou e pudesse adentrar naquilo que estava por trás desta, de modo a alcançar a “pré-história” do sujeito e da razão. Em termos históricos, isso significava pesquisar sobre os subterrâneos da Europa, verificar o que havia acontecido com os instintos e paixões humanas distorcidas pela civilização.
“Dialética do Esclarecimento” utiliza-se da viagem de Ulisses, da Odisseia,  para dar uma versão psicanalítica do desenvolvimento humano individual e coletivo.
Nela os autores investigam o motivo pelo qual a racionalidade das relações sociais, ao invés de ter produzido uma sociedade de indivíduos livres, produziu uma sociedade marcada pela ausência de emancipação e transformou os indivíduos em meras peças de uma engrenagem de um mecanismo que não compreendem e não dominam, mas ao qual se submetem e se adaptam. Era preciso compreender como a razão humana se restringiu a uma função instrumental, cuja forma social concreta é a do mundo administrado.
A jornada de Ulisses é representativa do processo de emancipação do ego. Para manter o ego unificado e íntegro, o sujeito deve manter-se no seu curso original de autopreservação. Precisa reprimir a vida inconsciente-instintiva, o que significa fazer renúncias sucessivas em relação aos prazeres do mundo arcaico.
A cada renúncia efetivada, a consolidação do Eu, do Ego, é mais forte, maior.
Ao se fortificar, esse Ego se consolida e se torna mais racional, supera a vida instintiva que não permite a sua diferenciação.
Fortalece-se o lado racional e o sujeito também adquire capacidade estratégica, passando a manipular o mundo externo. A natureza é reificada, isto é, torna-se objeto da sua dominação técnica, e o sujeito se diferencia dela.
Este é o caminho que Horkheimer e Adorno consideram único para a formação do ego autocrático. A unidade e identidade desse ego, conquistada a partir de sucessivos sacrifícios da vida pulsional, tem sua manutenção condicionada ao longo de todos estágios de desenvolvimento a uma vigilância constante: o sujeito precisa estar atento sempre contra as incursões da natureza interior e exterior.
Há algo de frustrante nessa emancipação do esclarecimento.
O projeto de Adorno e Horkheimer restringem a função do ego à sua autopreservação e, assim, ele assume um caráter autodestrutivo. O sacrifício da vida interior é, em verdade, um obstáculo para a liberdade e para a realização do se poderia chamar vida completa, ou a busca de uma satisfação integral.
A vida instintiva é importante para a criatividade e um sentimento de “vida que vale a pena ser vivida”, segundo Winnicott. Os autores, porém, acreditavam que mesmo assim, mesmo com o sacrifício da vida pulsional, a formação do sujeito tal como haviam proposto era um avanço em termos de autonomia.
Essa autonomia do sujeito, ainda, precisava ser justificada em termos políticos. Um indivíduo autônomo, capaz de um juízo político independente, mesmo que não totalmente, era importante num contexto histórico que havia conhecido o fascismo e o nazismo tão recentemente. Era importante salientar que o sujeito autocrático, que sacrifica sua natureza interior em nome da racionalidade, seria capaz de, ao menos, manter um olhar crítico diante do preconceito, dos dogmas e de certas formas de estreiteza mental.
Foram os aspectos biológicos das teorias de Freud que inspiraram a dialética do esclarecimento nessa exposição para entender o sujeito emancipado e autônomo. Adorno e Horkheimer justificavam a posição dizendo que os instintos, a vida pulsional, eram totalmente incompatíveis com as forças integrativas da sociedade.
Depois da dialética do esclarecimento vem Herbert Marcuse. Também representante da Teoria Crítica, Marcuse assimila a obra de Horkheimer e Adorno e segue além para alcançar a utopia.
Marcuse é um pensador engajado nos movimentos políticos, ativista, diferente dos teóricos anteriores, mais acadêmicos. Suas obras mais importantes foram produzidas já na prosperidade do capitalismo pós-guerra – Eros e Civilização e Ideologia da Sociedade Industrial – O Homem Unidimensional – e isso influenciou a sua maneira de tratar as teorias de Frankfurt.
No seu “Homem Unidimensional”, Marcuse defende uma dialética do esclarecimento própria e afirma que a prática política radical do sujeito está estancada ou neutralizada pela sociedade capitalista que vivia, a dos anos 50, na medida em que o sistema econômico criava falsas necessidades para os indivíduos e mantinha uma estrutura de produção para atendê-las constantemente. Somente uma crise econômica ou uma revolução cultural contra as falsas necessidades poderia romper esse círculo.
Em relação a Freud, Marcuse adota uma posição contrária a ideia de sociedade repressora do indivíduo, defendendo a possibilidade, ao menos em tese, de uma sociedade “não-repressora”.
Essa sociedade da liberdade era a sociedade comunista. Para Marcuse, as condições materiais para essa sociedade referencial poderiam ser fornecidas pela ciência então conhecida. Se na tese clássica do materialismo histórico era preciso uma transição pelo socialismo para que as forças de produção alcançassem seu ponto mais elevado, para Marcuse essa etapa já estava preenchida pelo próprio capitalismo.
O conflito entre capital e trabalho, condição necessária para a ação política em direção à sociedade comunista, passava a ter outra formatação, numa tensão marcuseana entre a repressão social excedente, característico do período, e o potencial social para se contrapor à repressão – além da náusea como modo de vida. A pobreza do materialismo clássico, motivadora da ação política, é substituída pela abundância das falsas necessidades atendidas.
Marcuse pretendia, com esses desdobramentos, historicizar a Psicanálise de Freud para combater o ceticismo freudiano em relação à mudança social.
Como Freud explicava isso? Segundo o autor, havia um descompasso entre o princípio do prazer que rege a psique humana e a vida em sociedade. Esse descompasso era a causa da infelicidade humana.
Mas o descompasso, na visão de Freud, não poderia ser superado pela mudança social. Não havia um modelo social compatível com o princípio do prazer. A condição biológica da humanidade, à qual são inerentes os instintos violentos e agressivos, como fator imutável e trans-histórico, é que impede que haja a superação. Ou seja, por mais que o sujeito promova revoluções ou mudanças radicais no meio social, a sua psique não encontrará uma relação harmoniosa e feliz nesse âmbito. A característica social do homem é, por isso, uma artificialidade somente pensável em termos de repressão constante e frustração.
É preciso observar, no entanto, que a Psicanálise não se opõe ao utopismo apenas porque não acredita na bondade da natureza humana, entendendo-se que o princípio do prazer, em qualquer situação social estaria sempre atuando de forma mesquinha e destrutiva. Ela se opõe por questão de princípio mesmo, levando em consideração os riscos da chamada onipotência do indivíduo.
Como seria possível uma sociedade totalmente livre, não repressora, diante da característica instintiva de onipotência? Todo o desenvolvimento do indivíduo deve ser permeado necessariamente pela repressão dessa característica, que é extremamente perigosa à sua existência e dos demais indivíduos. A aceitação da alteridade e da finitude da vida humana, são aprendizados inafastáveis para as crianças, e constituem, em sua essência, também restrições ou repressões à sua liberdade. Como isso ocorreria na utópica sociedade livre?
Considerações finais

Haveria hoje espaço para utilizar a Psicanálise aliada às proposições da Teoria Crítica?
O início do trabalho conjunto foi promovido pela emergência do fascismo e das formas de dominação e autoridade violentas do início do século XX. Os teóricos sociais neomarxistas da Escola de Frankfurt, diante dessa situação e desprovidos de categorias que lhes auxiliassem a encontrar respostas razoáveis à realidade que os pressionava, encontraram apoio na Psicanálise para suplementar as contribuições do marxismo e assim entender melhor o que estava acontecendo. Se os indivíduos estavam agindo de modo irracional, submetendo-se voluntariamente a regimes opressores, as ideias de Freud pareciam apropriadas para interpretar esse comportamento.
Atualmente, o fundamentalismo religioso e o terrorismo muitas vezes a ele associado poderiam se tornar um novo campo de estudos para uma Teoria Crítica associada à Psicanálise. O irracionalismo e a violência extrema promovida por grupos fundamentalistas certamente demandariam uma pesquisa psicanalítica para buscar uma explicação a este fenômeno recente.


Bibliografia

FROMM, Erich. Meu Encontro com Marx e Freud. 6ª edição, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.
JAY, Martin. La Imaginacion Dialectica. História de la Escuela de Frankfurt y El Instituto de Investigacion Social (1923-1950). Madrid: Taurus, 1974.
MARCUSE, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial: o homem unidimensional. 4ª edição, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Uma Crítica Filosófica ao Pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.
NOBRE, Marcos. A Teoria Crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
ROUANET, Sérgio Paulo. Teoria Crítica e Psicanálise. 3ª edição, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
RUSH, Fred (org.). Teoria Crítica. Aparecida: Ideias e Letras, 2008.

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