terça-feira, 15 de junho de 2010

Ética ambiental

 
Ética ambiental e a hipótese do “mundo sem ninguém”

Marco Antonio Schmitt

Os efeitos nocivos das atividades humanas sobre o ambiente natural do planeta são amplamente conhecidos. As campanhas de grande dimensão em favor de um maior cuidado com o ambiente, no sentido de que é preciso, urgentemente, adotar ações humanas menos destrutivas e de maior respeito com a natureza, realçam e debatem tais efeitos nos mais diferentes níveis de discussão.

Da produção legislativa é exigida uma maior intervenção nas atividades humanas para proteger o ambiente. Nas práticas diárias, recomenda-se o consumo de produtos cuja origem respeite o ambiente e incentiva-se a separação de resíduos domésticos em orgânicos e não orgânicos. As atividades industriais e comerciais devem atender a programas de controle ambiental fiscalizados pelo Estado e pela sociedade e sua autorização para operar depende do cumprimento de uma série de obrigações, todas visando a proteção ambiental.

As situações assim descritas soam hoje como óbvias ou evidentemente necessárias, mas elas são representativas de uma época muito recente. Foi no recém-terminado século XX que a questão ambiental foi consolidada, ao custo de vários acidentes e degradações de toda ordem, que destruíram grandes espaços naturais e comprometeram a saúde das pessoas. Mais do que isso, foram situações de risco que, pela primeira vez na história, derrubaram a convicção generalizada de que os recursos naturais do planeta são inesgotáveis e de que o ambiente tem uma ilimitada capacidade de regeneração.

Os acidentes que resultaram no derramamento de óleo em mares e praias, que destruíram lugares destinados ao lazer e, ao mesmo tempo, à sobrevivência de comunidades dependentes da pesca. Afetaram a saúde das pessoas que se alimentaram de produtos contaminados pelos acidentes. Destruíram o local de reprodução de espécies animais, que foram obrigadas a migrar ou simplesmente desapareceram.

Além da ocorrência de acidentes, a prática de extração de recursos naturais sem o parâmetro da sustentabilidade, isto é, sem considerar o comprometimento do mesmo recurso para gerações futuras, também hoje é condenável.

Como se interpreta essa mudança de orientação operada durante o século XX? Em síntese, a submissão do meio natural ao desenvolvimento das atividades humanas, de forma predatória e destrutiva, não mais se justificava por si, mas apenas se respeitada a qualidade de vida ambiental.

Dito de outro modo, o desenvolvimento, enquanto valor ou ideologia, não se sustentava mais se ele não proporcionava qualidade de vida de modo amplo, incluindo neste conceito a qualidade do ar, da água, do solo e de todos os componentes naturais que contribuem para uma vida humana saudável.

Estava-se diante de um dilema. A atividade humana de transformação da natureza para o desenvolvimento, cujo objetivo era proporcionar bem-estar, gerava efeitos colaterais que ameaçavam o bem-estar. O que fazer para que esses ditos efeitos colaterais, advindos da degradação dos recursos naturais, não viessem a anular as melhorias de bem-estar geradas com o desenvolvimento?

Para responder a perguntas como essa que surgiram teorias éticas com a temática ambiental.

De um lado, formaram-se teorias antropocêntricas que defendem limites de intervenção humana no ambiente, conservando ou preservando recursos materiais. A ética de conservação dos recursos naturais defende a necessidade de se limitar o uso dos mesmos de modo que as gerações futuras também possam continuar a exploração. Já a ética de preservação quer proteger os recursos da exploração de modo que estes possam continuar contribuindo para o desenvolvimento espiritual do ser humano, e não apenas material e imediato.

Por outro, formaram-se teorias biocêntricas, que defendem uma relação diferente entre homem e natureza. Enquanto nas éticas da conservação e preservação o homem assume uma responsabilidade para com a natureza, o biocentrismo defende uma ética que se assenta sobre deveres diretos do homem perante a natureza.

No caso do biocentrismo mitigado, T. Regan parte da noção de sujeito de vida, seres vivos que possuem um ponto de vista sobre a sua própria vida, isto é, que têm uma identidade psicofísica, têm capacidade de desejos e atuam com objetivos. Todos esses sujeitos de vida, que incluem mamíferos de até um ano de vida, merecem consideração moral (JUNGES, 2004, p. 24). Não podem, portanto, ser tratados como meros objetos das nossas necessidades vitais.

Peter Singer também apresenta o seu modelo, no qual, todo ser que é capaz de experimentar sofrimento é digno de consideração moral, ou seja, é imoral infligir dor àqueles seres vivos que sentem dor (JUNGES, 2004, p. 25).

Já os modelos biocentristas globais são ainda mais radicais e fortemente antiantropocêntricos. Albert Schweitzer, por exemplo, propõe uma ética do respeito à vida que foi sintetizada numa frase: “Eu sou a vida que quer viver em meio à vida que quer viver” (JUNGES, 2004, p. 29). Ou seja, tudo o que tem vida é moralmente respeitável e o homem deve pautar as suas ações por essa máxima. O caráter sagrado da vida se sobrepõe a todos os demais valores do homem.

Há também outro modelo biocentrista conhecido como ética da terra, proposto pelo americano Aldo Leopold, ainda em 1949. Segundo Leopold, uma atitude moralmente adequada, em se falando de ética ambiental, é aquela que tende a preservar a integridade, a estabilidade e a beleza de uma comunidade natural, da qual o próprio homem faz parte (JUNGES, 2004, p. 32). Todas as formas de vida conhecidas formam junto com o homem um grande sistema, uma comunidade biótica, e que o homem deve despertar seus sentimentos de amor e respeito em relação a esse conjunto, para que ele se mantenha íntegro e harmonioso.

Um último modelo que merece referência é o da ética bioempática de J. B. Callicott, que defende uma convivência do homem com a comunidade biótica, tal como já ocorre com a família, a sociedade e a nação, formando uma grande aliança contra o perigo de aniquilação do nosso planeta (JUNGES, 2004, p. 35). E nesta aliança o ser humano é incluído na comunidade biótica de modo paritário com os demais seres vivos.

Os modelos de ética ambiental biocêntricos são cativantes e têm boa repercussão no meio intelectual, pois representam o que há de mais inovador nessa matéria. A atribuição de deveres ao homem, cujos correspondentes direitos são titularizados pelo ambiente enquanto entidade simbolicamente personalizada, requer uma série de adaptações no modo de pensar as instituições e as regras de conduta. Como, por exemplo, haveria de ser feita a assimilação do direito dos animais, sendo estes apenas objetos de direito, e não sujeitos de direito?

A ética do biocentrismo se contrapõe à chamada ética do desenvolvimento. O crescimento estimulado desde a Bíblia, do “crescei e multiplicai-vos, dominai a natureza”, não é mais unanimidade. O que a ética ambiental orientada biocentricamente propõe é que a dominação do meio natural deve ser substituída por uma atitude integradora. O homem é parte na natureza, da biota, depende dela e deve se integrar a esse sistema. Não deve destruí-la, mas respeitá-la como todo ser vivo merece ser respeitado. A regra de ouro da ética de reciprocidade – não faz aos outros o que não queres que eles façam a ti mesmo – passa a ser aplicável na relação do homem com o ambiente e não apenas entre os homens.

Essa ética do respeito mútuo, entre homem e ambiente, é uma pauta de conduta muito positiva e que, certamente, se colocada em prática na vida real, levaria a resultados desejáveis.

Entretanto, haveria espaço nessa ética para a hipótese do mundo sem ninguém?

Em outras palavras, seria razoável adotar uma posição ética de tipo biocêntrica que defendesse a intocabilidade de áreas ainda em seu estado natural, ou que estivessem muito próximas do que eram antes do surgimento do homem?

A hipótese do mundo sem ninguém foi descrita por Alan Weisman, na obra "O mundo sem nós" e transformada em série de televisão em anos recentes (Life after People, série de televisão produzida pelo History Channel; no Brasil, recebeu o título de “O Mundo sem Ninguém”). Tanto o livro quanto a série televisiva descrevem o que aconteceria no mundo após o desaparecimento de todos os seres humanos. As pessoas desapareceriam não por efeito de um desastre nuclear ou natural, nem de modo paulatino. O fim se daria para os humanos de modo rápido e instantâneo, por uma causa desconhecida.

A grande questão suscitada pela hipótese é: o que aconteceria com as cidades, casas, usinas de energia, pontes, enfim, todas as construções e objetos culturais deixados pelo homem? Quanto tempo esses bens subsistiriam sem a presença humana, sem a sua constante manutenção por parte dos seres humanos?

Pode parecer surpreendente, mas os traços da cultura humana sem a nossa presença não durariam muito tempo, de acordo com o estudo de Weisman. As cidades seriam retomadas por plantas e animais. As estradas, em questão de anos, desapareceriam sob a vegetação rasteira. Animais domésticos como cães e gatos, por falta de amparo dos antigos donos, em parte morreriam ou se tornariam selvagens. Com o esgotamento das fontes de energia elétrica, o bombeamento de águas cessaria e muitas cidades seriam alagadas e, neste caso, os pântanos retomariam o espaço perdido. Após uma centena de anos, poucas paredes de alvenaria ainda estariam de pé. Rios e florestas teriam, finalmente, condições para se regenerar.

Este mundo natural recomposto e com cheiro de vida é uma referência ideal absolutamente desejável. Mas não um referencial ético.

A ética do biocentrismo assume posições que considera o mundo sem ninguém uma necessidade. Quando se defende em fóruns mundiais a manutenção das grandes florestas tropicais e toda a sua biodiversidade, as ações propostas muitas vezes vão ao encontro dessa premissa, sugerindo que tais áreas sejam isoladas da ação humana. Isolando-as, sua condição seria preservada para as gerações futuras e isso seria positivo para todo o planeta.

Entretanto, a premissa assumida, de que áreas naturais isoladas e intocadas são mais benéficas do que se forem adequadamente exploradas, é falsa, porque pressupõe um mundo sem ninguém.

O mundo real é habitado por bilhões de seres humanos. A posição dominante da humanidade em relação aos outros seres vivos se justifica, entre outras condições que a diferenciam, pelo fato de serem os únicos seres a agirem de acordo com padrões de conduta de grande complexidade, inclusive orientados eticamente. As necessidades vitais dessa enorme população são muitas e, de acordo com o padrão comportamental assumido, podem tornar insuficientes os recursos naturais existentes.

As dificuldades para se atender a todas as necessidades vitais geram conflitos de várias ordens. Conflitos armados por disputa de território, fome e desnutrição de milhares de pessoas, conflitos agrários que denotam a desigual distribuição das terras férteis e mesmo a necessidade constante de se ampliá-las para fins de colheita, disputas no acesso à água potável, controle sanitário insuficiente e o consequente sofrimento das populações com doenças e até mesmo a deficiente educação básica proporcionada regionalmente. Estes são problemas a enfrentar num mundo com bilhões de pessoas, e não num mundo sem ninguém.

Antes de se pensar em investir recursos na proteção do ambiente contra os seres humanos, criando barreiras físicas e éticas, é preciso pensar na solução de problemas dos seres humanos, aqueles que causam o sofrimento diário de milhares deles. A criação de barreiras na movimentação das populações, com a defesa de éticas biocêntricas extremas, que atribuem deveres a pessoas pressionadas pela fome, violência e o esquecimento, não é razoável.

É preciso ter em mente que a ética desenvolvimentista de submissão sem limites dos recursos naturais deve, evidentemente, ser superada. Ela não encontra mais justificativa hoje num mundo que se conhece como limitado, com recursos que não são inesgotáveis. Mas esses recursos, que são as grandes riquezas com que o ambiente nos provê, devem servir para o máximo bem-estar que se pode proporcionar a todos os seres humanos, de modo equilibrado e sustentável.

O homem não pode abrir mão desse bem-estar. Impedir o acesso de populações carentes às riquezas naturais em nome de supostos direitos dos animais, ou deveres para com o caráter sagrado do ambiente, terá consequências desastrosas. Uma ética ambiental pautada rigorosamente pelo biocentrismo extremado, que tenha um “mundo sem ninguém” como algo desejável e positivo, somente se efetiva ao custo de mais destruição – desta vez, da população pobre e desamparada que vaga pelo mundo em busca de comida e proteção social.

Nesse sentido, reafirma-se: a ética ambiental não pode se orientar para um mundo sem ninguém.

Bibliografia consultada:

JUNGES, José Roque. Ética ambiental. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2004.
SAGOFF, Mark. Price, Principle and the Environment. New York: Cambridge University Press, 2004.
WEISMAN, Alan. O mundo sem nós. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007.

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