terça-feira, 30 de novembro de 2010

III - Percepção consciente e ação humana (final)

Parte II – A percepção pura e a memória

Se está correta a lei bergsoniana de que percepção e ação estão relacionadas de modo que, a primeira dispõe do espaço na exata medida em que a segunda dispõe do tempo, o passo seguinte da análise do corpo será a de investigar como é gerada a consciência, ou como a percepção adquire a particular característica de ser consciente.

Não é possível identificar a percepção consciente sem analisar as noções de percepção pura, discernimento e memória.

Preliminarmente, é preciso registrar qual a importância do sistema nervoso e dos órgãos dos sentidos na percepção, para Bergson: é indispensável, a percepção da matéria sem os órgãos dos sentidos é praticamente impossível, não serviria para nada (BERGSON, 2010a, p. 43).

A percepção pura é uma hipótese criada por Bergson para entender a consciência. Ela é, portanto, mais de direito que de fato, uma parte da percepção inteira.

A percepção na sua integralidade está impregnada de lembranças, de conteúdos da memória. Os dados presentes dos órgãos dos sentidos são misturados sempre com lembranças. As lembranças entram numa espécie de disputa de espaço com os elementos próprios da percepção, fazendo com esses dados sejam diluídos numa base de experiências anteriores. Há, inclusive, um deslocamento das percepções reais pelos conteúdos de memória, o que pode resultar em ilusões, ou considerar imagens próprias de lembranças como se resultassem de uma percepção atual.

Para explicar a percepção consciente, Bergson sugere que se considere possível separar da percepção integral tudo aquilo que seja lembrança, conteúdo da memória, restando assim apenas o que a matéria, os pontos no espaço que estão em contato com o nosso corpo, nos oferecem como visão imediata. Esta é a chamada percepção pura.

A percepção purificada de qualquer conteúdo da memória é a representação que fazemos do mundo material. Entre presença e representação há diferença, que poderia ser interpretada como um acréscimo ou um decréscimo. Na primeira hipótese, a representação estaria envolvida em algo misterioso, inexplicável. Tal obstáculo seria superado na segunda, em que a representação é menos do que a imagem é em si.

Bergson afirma, portanto, que a representação das imagens é, efetivamente, a sua conversão em algo de menor conteúdo, no qual certos pontos são obscurecidos, diminuindo a sua extensão (BERGSON, 2010a, p. 31).

Os pontos suprimidos das imagens são aqueles que as relacionam de modo solidário com outras imagens. O universo é amplo demais para que a percepção consciente o capte de modo integral. Por isso, há um direcionamento para pontos essenciais que captam apenas o invólucro.

Esse direcionamento obedece a um critério de ação, de influência. A percepção consciente isola os pontos em que a ação do corpo é possível.

A percepção é comparável ao fenômeno da reflexão dos raios de luz, que passam de um meio a outro mudando de direção. Em alguns pontos não há reflexão e mudança de direção, mas refração pura e simples. Os raios não passam pelo meio. Na percepção ocorre algo semelhante no que diz respeito às imagens que se relacionam ao nosso corpo e a seus centros de ação. Aqueles pontos da imagem que efetivamente interessam ao corpo pelo critério da atividade não o atravessam, mas são refletidos de volta ao objeto da percepção, como num efeito de miragem.

É nesse sentido que Bergson afirma ser a representação das coisas a medida da atividade do nosso corpo sobre elas (BERGSON, 2010a, p. 35). E essa medida, que resulta na escolha de pontos essenciais das imagens e numa segunda imagem menor que a do mundo material, é o que conhecemos por discernimento.

A percepção consciente, ou consciência, é necessariamente pobre. Ela não é uma fotografia da realidade, é muito menos que isso, é apenas um fantasma da matéria ou dos átomos que a compõem. Entre o ser e o ser percebido há um intervalo, maior ou menor, em que uma série de qualidades da matéria em si foi desconsiderada. Mas é preciso considerar que há uma complementaridade entre ambos – o que falta à matéria percebida continua lá, na matéria em si.

O mecanismo da percepção, no entanto, está desenhado. Imagens existem no exterior do nosso corpo que alcançam os órgãos dos sentidos, cuja influência é levada por nervos até o cérebro na forma de um movimento que vai do mundo externo para o interno. O cérebro comandará por fim, como uma central telefônica, a ação voluntária decorrente.

Retomando a importância dos órgãos dos sentidos para a percepção, Bergson formula a hipótese em que os nervos sensitivos são cortados parcial ou totalmente (BERGSON, 2010a, p. 44).

A partir do corte desses nervos, o prejuízo imediato para o nosso corpo ocorre sobre o discernimento, responsável pela diferença entre o ser e o ser percebido. Os movimentos do corpo continuariam possíveis, porém não haveria mais como coordená-los. A atividade do nosso corpo estaria, desse modo, muito diminuída, como no caso da perda da visão. Sem as impressões visuais, as ações continuam virtualmente possíveis, mas novos arranjos teriam que ser feitos no âmbito cerebral para compensar essa perda de atividade.

Como se forma a representação?

Ela se forma na infância, a partir de sucessivas induções. Inicialmente ela é impessoal para depois tomar o nosso corpo como centro e se tornar a nossa representação. O nosso corpo se desloca no espaço e permanece sempre invariável, enquanto que as demais imagens variam. Assim, pois, é por indução que se forma o centro corporal de referência para o qual convergem todas as outras imagens.

A percepção em estado puro, do mesmo modo, não vai do nosso corpo aos outros corpos. Ela está inserida num conjunto dos outros corpos; aos poucos ela vai se contraindo e limitando e adota o nosso corpo como centro. Ela é levada a essa centralização pela experiência: o nosso corpo tem a faculdade de efetuar ações e experimentar afecções e ele ocupa sempre o centro da representação. Essa experiência constante faz com que as outras imagens sejam, paulatinamente, organizadas pela percepção em torno do nosso centro corporal a partir de um critério de ação que este pode lhes submeter. A imagem interior dessa imagem privilegiada também é por nós percebida, diferente das outras das quais se conhece apenas uma película superficial. Esta imagem privilegiada é o centro do nosso universo, a base da nossa personalidade, nosso corpo (BERGSON, 2010a, p. 64).

A inversão bergsoniana, portanto, parte da ação e não da afecção para explicar a relação entre as imagens e as ideias, ou o ser e o ser percebido. Parte do nosso corpo e da sua potencialidade de operar mudanças no mundo exterior que o cerca. Desde logo, Bergson insere o corpo no conjunto de imagens extensas, no mundo objetivo, diferente da Psicologia tradicional que iniciaria diretamente pela análise da subjetividade.

Inserido nesse universo material, nosso corpo percebe centros de indeterminação próprios da vida. As ações são irradiadas desses centros a partir do movimento ou da influência das imagens umas sobre as outras. A matéria viva primitiva realiza essa função quando se alimenta ou se repara. Já as formas de vida mais sofisticadas dividem essas funções em órgãos diferentes, destinando a primeira para os órgãos de nutrição e a segunda para o sistema nervoso, cuja função específica é agir. Os elementos nervosos ainda se dividem em extremidades, uma delas captando impressões exteriores, a outra efetuando movimentos. No exemplo da visão, os bastonetes e cones recolhem impressões e estímulos que serão transformados ou direcionados para movimentos específicos. A percepção nasce da mesma causa que deu origem ao sistema nervoso: ela exprime e mede a capacidade de agir do ser vivo, a indeterminação do movimento ou da ação que seguirá o estímulo recolhido (BERGSON, 2010a, p. 66/67).

A percepção em estado puro, portanto, faz parte das coisas. Ela não é produzida pelo cérebro, nem um fenômeno independente de qualquer experiência. A percepção em estado puro é o que de mais objetivo se pode imaginar no contexto da relação entre sujeito e mundo. E a sensação não surge da consciência, ela coincide com as modificações necessárias que sofre a particular imagem do nosso corpo.

E a memória, como é entendida a partir da hipótese da percepção pura? Ela é o fio condutor de uma série de visões instantâneas que integra essa percepção pura mais voltada para as coisas do que para nós.

A memória, enquanto sobrevivência de imagens passadas, está sempre se misturando com as imagens da percepção presente, podendo até mesmo substituí-las. Nossas percepções, em outras palavras, estão impregnadas de lembranças. A memória intercala o passado no presente. E é ela que dá o caráter subjetivo da percepção.

Segundo Bergson, o erro causador de dificuldades de compreensão desses fenômenos é considerar que entre percepção pura e lembrança há apenas uma diferença de grau, e não de natureza (BERGSON, 2010a, p.70). O papel do Psicólogo seria, nesse sentido, separar justamente essas duas situações. Uma das dificuldades criadas por esse erro é considerar a memória algo que ela efetivamente não é, uma percepção mais fraca, o que permite também dizer que a percepção é um lembrança mais intensa.

Este é um erro da Psicologia que impede que se explique de modo adequado a memória, e acaba influenciando a Metafísica com suas concepções realista e idealista da matéria.

Enfim, o caráter subjetivo da percepção é dado pela memória e pelo tempo. O conjunto de lembranças da minha memória se associa com a percepção pura e costura as diferentes e instantâneas imagens que se sucedem no devir. O caráter de continuidade é oferecido pela memória, a qual é representativa do tempo – ela contrai o presente em momentos do passado, em lembranças que são, posteriormente, associadas com os novos resultados da percepção e das sensações, que serão temporalizadas.

Considerações finais

O primeiro capítulo de “Matéria e Memória”, sobre o papel do corpo, é uma introdução ao tema maior de Bergson nesta obra, a memória, que é tratada nos capítulos centrais que seguem.

O corpo é analisado como o grande instrumento da ação, do movimento. Ao dispor da percepção, o corpo se volta para o universo, para os objetos materiais que o cercam na forma de imagens, de modo a se relacionar com eles por um critério de movimento. Os objetos externos transmitem movimentos ao corpo e este reage.

A percepção consciente é uma característica própria de organismos vivos mais avançados, providos de sistema nervoso central. Ela depende intrinsecamente dos órgãos dos sentidos. Também ela permite que o nosso corpo aumente os pontos de contato e de relação com o mundo exterior, ampliando o horizonte e o espaço diante de nós.

Diferente do que ocorre em organismos primitivos, a ação humana não é uma mera reação táctil, ela é caracteristicamente indeterminada. Antes do contato direto, a percepção consciente já projeta ações virtuais possíveis e aqui se identifica um primeiro indício de liberdade.

A percepção lato sensu, num segundo momento, deve ser analisada nos seus aspectos constituintes. Enquanto percepção consciente, ela está impregnada de lembranças, de conteúdo da memória.

É a memória que dá a característica de consciente à percepção. A memória representa o passado e é o resultado das experiências anteriores, as quais, pela indução, tornaram o nosso corpo o centro e a referência enquanto situação no mundo.

Nosso corpo é uma imagem entre muitas outras, com que ele se relaciona pelo critério do movimento. Ao se firmar como centro referencial, tal experiência induz a consciência ou a percepção consciente.

Despojada da memória, a percepção pura é mero presente. O presente é constituído por infinitos pontos que se sucedem espacialmente. Somente com a inserção do tempo, sob o signo da memória e da experiência do passado, que esses pontos aderem ao nosso corpo e fundam a noção de consciência.

E aqui retomamos à frase fundamental de Bergson: a percepção dispõe do espaço na exata proporção que a ação dispõe do tempo.

Bibliografia consultada

BERGSON, Henri. Matière et Mémoire: essai sur la relation du corps à l’esprit. Le Choc Bergson. Édition critique. 8ª edição, Paris: PUF, 2010.

_______________. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução Paulo Neves. 4ª edição, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010a.

________________. Memória e Vida; textos escolhidos por Gilles Deleuze. Tradução Claudia Berliner. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2006.

DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução Luiz b. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 1999.

RIDAU, Émile. Les rapports de la matière et de l’esprit dans le bergsonisme. Paris: Librairie Félix Alcan, 1932.

RIQUIER, Camille. Arquéologie de Bergson. Temps et métaphiysique. Paris: PUF, 2009.

RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Livro Quarto. Tradução de Brenno Silveira. 3ª edição, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.

VIEILLARD-BARON, Jean-Louis. Compreender Bergson. Tradução de Maria de Almeida Campos. Petrópolis: Vozes, 2007.

WORMS, Frédéric. Introduction à Matière et mémoire de Bergson. Paris: PUF, 1997.

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