segunda-feira, 29 de novembro de 2010

II - Percepção consciente e ação humana

PARTE I – A percepção e o espaço

Mesmo que “Matéria e Memória” se proponha a ser, essencialmente, mais uma obra cujo objetivo é analisar as relações entre corpo e espírito, o corpo e a alma, ou ainda entre o espírito e a matéria, como o subtítulo já antecipa, Bergson não apenas retoma e reafirma o dualismo clássico, mas inova o modo de apresentá-lo.

Inova o modo de apresentar o dualismo, porque utiliza conceitos novos, como o de imagem para se referir à matéria. Inova quando valoriza o senso comum no modo como esse olha a matéria, assim como quando utiliza a função psicológica da memória como ponto de referência ou exemplo para explicar as relações entre espírito e matéria.

Bergson indica desde logo, no prefácio, quais são os princípios que o guiarão em “Matéria e Memória”.

Primeiro, a análise psicológica inerente à investigação do Ensaio será pautada por um caráter utilitário das funções mentais, as quais estão essencialmente voltadas para a ação. Por que isso? Porque a Psicologia, segundo Bergson, tem por objeto o estudo do espírito humano enquanto este funciona utilmente na prática, sendo que a Metafísica dispõe do espírito humano já desembaraçado da ação e se assumindo como pura energia criadora (BERGSON, 2010a, p. 9).

Segundo, que os hábitos contraídos na ação humana, quando transpostos à esfera da especulação, criam problemas artificiais ou não-naturais que são objetos da Metafísica.

O papel do corpo propriamente dito é descrito a partir da análise das noções de consciência, percepção e ação.

A realidade imediata captada pelos sentidos, abstraindo-se de qualquer teoria realista ou idealista, é formada por imagens. Dentre essas imagens a mais evidente e importante, aquela que prevalece, é a do nosso próprio corpo. Este é, portanto, o ponto de partida de Bergson na análise da matéria em sua relação com o espírito.

Ao nosso corpo cabe uma função que é a de selecionar imagens para a representação. O cérebro tem um papel importante nessa atividade, todavia não é ele que produz as imagens do universo. Ele próprio é uma imagem e, portanto, segundo Bergson, seria absurdo afirmar que a representação do universo inteiro estaria nele implicada (BERGSON, 2010a, p. 13).

Qual a relação entre a imagem do nosso corpo e as imagens que lhe são exteriores? É uma relação de movimento. As imagens externas ao nosso corpo lhe transmitem movimento e este, por sua vez, restitui movimento àquelas imagens. O nosso corpo é, portanto, um centro de ação ou, simplesmente, um objeto destinado a mover objetos (BERGSON, 2010a, p. 14).

É possível afirmar, portanto, que a realidade assumida por Bergson no capítulo inicial de “Matéria e Memória” é a de um conjunto de imagens percebido pelos órgãos do sentido do nosso corpo, tal como faz o senso comum. A existência das imagens não depende da atividade cerebral. Tal como o próprio cérebro, são imagens com existência assegurada por si mesmas e que estão submetidas às leis da natureza. Matéria e imagem, enfim, se equivalem.

O movimento é o que produz a dinâmica entre as imagens. A realidade não é formada por imagens estáticas, mas imagens que se relacionam com trocas constantes de movimento. O nosso corpo se relaciona com outras imagens de diferentes maneiras, de acordo com a distância, com o espaço que as separa dele. Perceber essas imagens significa, assim, a ação potencial ou possível do nosso corpo sobre as mesmas.

Em termos bergsonianos, os objetos que cercam meu corpo refletem a ação possível do meu corpo sobre eles (BERGSON, 2010a, p. 16).

Ação e percepção estão intrinsecamente relacionadas. A afirmação é demonstrada a partir de uma modificação hipotética do nosso corpo, na qual são seccionados os nervos aferentes do sistema cérebro-espinhal, responsáveis pela percepção. O mundo e o restante do nosso corpo permaneceriam iguais e a mudança operada teria pouca significação. Entretanto, toda a nossa percepção despareceria, o que significa que o cérebro e a medula não poderiam mais receber e nem transmitir movimentos. Os nervos seccionados eram os transmissores desses movimentos internos e, portanto, eram eles que permitiam a ação do corpo.

A percepção é, desse modo, o âmbito no qual são projetadas as nossas ações ou que contém virtualmente todas as nossas ações.

O aspecto paradoxal dessa situação hipotética é que uma mudança no mundo material – o ato de seccionar nervos do nosso corpo – causou uma mudança do que chamamos “nossa percepção”, o que leva Bergson a uma nova definição: matéria é o conjunto das imagens, e percepção da matéria são as essas mesmas imagens então relacionadas à ação possível de uma certa imagem determinada, nosso corpo (BERGSON, 2010a, p. 17).

As imagens são, então, classificadas em dois sistemas. Há um sistema de imagens o qual conhecemos simplesmente como universo. Neste sistema as imagens estão voltadas para si e não para o corpo, influenciando-se reciprocamente. Ao lado deste está outro sistema de imagens denominado nossa percepção do universo, no qual o corpo é a referência mais importante. Qualquer movimento desse corpo faz com que tudo mude nesse sistema, como num caleidoscópio que está sendo girado. (BERGSON, 2010a, p. 20).

Uma mesma imagem pode estar, simultaneamente, em ambos os sistemas – um regulado pela ciência, o outro regulado pela consciência, no qual todas as imagens se regulam a partir de uma única, o nosso corpo.

Realismo e idealismo são posicionamentos que nascem das relações possíveis entre esses dois sistemas. A pergunta que se faz o realista e o idealista é a seguinte: o que é o universo?

O primeiro dirá que se trata de um conjunto de imagens regidas por leis da natureza, de caráter necessário e imutável. Mas não poderá negar que existem percepções, ou um sistema de imagens em que o corpo é a referência e todas as imagens se orientam a partir dessa imagem dita central. O segundo, o idealista, partirá desse segundo sistema para derivar o anterior, do universo propriamente dito. Ambos não negam a existência dos dois sistemas, apenas invertem a dedução de um e outro.

O tempo se relaciona de modo diferente com os dois sistemas. Enquanto que o sistema do universo propriamente dito é, exclusivamente, o momento presente, o universo percebido é o que possibilita a noção do devir, do tempo passado, presente e futuro, da sucessão de momentos. Sem o universo percebido não há temporalidade, há apenas um estático presente.

A matéria é imagem. O universo é constituído por um conjunto de imagens. O nosso corpo é uma dessas imagens. Estas imagens relacionam-se entre si.

Qual é o critério para que essas imagens se relacionem? É o movimento. As imagens se relacionam entre si com troca de movimentos, umas influenciando as outras. Os movimentos do nosso corpo são as ações.

O que é a percepção do nosso corpo? É a ação potencial que ele exerce sobre as outras imagens. Essa ação varia de acordo com a distância, o espaço, existente entre as imagens e o nosso corpo.

Portanto, a realidade é uma dinâmica de imagens dentre as quais há uma de especial importância, que é o nosso corpo, cuja percepção é a razão de ser de um duplo nível do real: o universo ou o sistema de imagens que não possui centro e é regido por leis naturais imutáveis, e o universo percebido, ou o sistema das mesmas imagens agora estritamente relacionadas a uma imagem central, o nosso corpo.

Segundo Bertrand Russell, um dos críticos mais conhecidos das teses bergsonianas, há aí uma confusão evidente entre o ato de conhecer e o objeto conhecido e que vicia o entendimento do que Bergson está propondo com a sua Filosofia. A matéria e o ato de perceber a matéria consistem, erroneamente, para Bergson das mesmas coisas (RUSSELL, 1969, p. 373).

Ambos os sistemas de imagens, ou níveis de realidade – um objetivo, outro subjetivo – são permeados pela noção de tempo, necessariamente. Enquanto o universo objetivo está vinculado unicamente ao presente, o universo percebido se vale do passado, do presente e do futuro e garante uma experiência mais ampla, de continuidade.

Continuidade e temporalidade são, enfim, noções coextensivas. Não há continuidade sem temporalidade ampla, sem passado, presente e futuro. E não há temporalidade ampla da qual não decorra continuidade.

Ainda, outra observação possível de ser feita sobre o texto bergsoniano é que universo e universo percebido são experiências que não se excluem mutuamente. Não é impositivo que se opte por uma ou outra experiência, elas são complementares e não excludentes.

E aqui retornamos ao prefácio. Bergson se propôs a analisar a matéria neste primeiro capítulo antes da dissociação realizada pelas teses rivais do realismo e idealismo, antes de pensar como Descartes e como Berkeley. A dificuldade de realizar semelhante análise é grande depois que os filósofos separaram realidade e aparência.

Segundo Bergson, se na história do pensamento a ênfase de análise da matéria tivesse sido pelo caminho do meio entre as teses de Descartes e Berkeley, a Metafísica não teria sido sacrificada à Física. O senso comum teria prevalecido e as críticas de Kant, por exemplo, não teriam sido necessárias (BERGSON, 2010a, p. 3 e 4).

Para superar as dificuldades teóricas do realismo e do idealismo, Bergson encontra no modo como se entende a percepção um elemento fundamental comum a ambos. A percepção tem uma natureza especulativa e é voltada para o conhecimento puro. É contra esta noção que Bergson se volta, por considerar que perceber não é conhecer (BERGSON, 2010a, p. 24).

A percepção não está voltada para o conhecimento puro. Ela é, em verdade, um sistema de reação do corpo aos movimentos externos que lhe são transmitidos pelos objetos que o cercam.

O sistema nervoso é a condição de possibilidade da percepção e o seu maior ou menor desenvolvimento fará com que ela seja mais ou menos apurada. Para demonstrá-lo, Bergson descreve o progresso da percepção externa a partir dos organismos primitivos até os atuais vertebrados superiores.

Os organismos de vida primitivos, como a ameba, reagiam de modo mecânico aos estímulos exteriores. A evolução fez com que organismos vivos mais complexos fossem gerados, nos quais as funções fisiológicas passaram a ser organizadas em diferentes sistemas – de um lado, funções de reação mecânica, de outro, funções vinculadas a um sistema nervoso, não propriamente mecânico. De um lado estão as ações reflexas, de outro estão as ações voluntárias.

Esses dois sistemas se valem de um órgão principal. O sistema nervoso é regido pelo cérebro e o sistema de ações reflexas, pela medula. Ambos são responsáveis pelos movimentos do corpo. Não há, entretanto, uma diferença de natureza entre os dois sistemas. Há uma diferença de complexidade.

O cérebro funciona como uma espécie de “central telefônica”, segundo Bergson. Ele não cria representações nem imagens. O cérebro tem seu papel vinculado à transmissão e repartição dos movimentos do corpo. Ele é um receptor de excitações.

Recebida a excitação, o cérebro faz uma distribuição do movimento. Ou ele o distribui para um órgão de reação específico, ou ele o disponibiliza para a totalidade das vias de movimento para analisar a melhor opção.

Qual a consequência de uma crescente complexidade desse sistema nervoso conduzido pela central telefônica que é o cérebro? Há uma relação direta entre a maior complexidade do sistema e uma percepção cada vez mais apurada.

Essa percepção aperfeiçoada aumenta distâncias.

Os organismos primitivos, que eram desprovidos de sistema nervoso, somente reagiam a estímulos externos depois que eram fisicamente tocados. A percepção era uma mera reação mecânica. Os organismos complexos, que possuem sistema nervoso, são providos de órgãos dos sentidos e é com eles que a percepção se antecipa à reação táctil. Ao invés de aguardar o toque para reagir, a percepção aumenta os pontos no espaço com os quais entra em relação e, desta forma, mecanismos mais complexos de ação são colocados em funcionamento.

Segundo Bergson, a perfeição crescente da nossa percepção se dá na mesma proporção em que ela torna cada vez menos necessária a ação. Dessa forma, é possível afirmar que a percepção está voltada para a ação, e não para o conhecimento puro como se supunha até então (BERGSON, 2010a, p. 27).

A percepção não é criadora de realidade, ela é um instrumento do nosso corpo que comanda e administra a nossa ação. Quanto mais imediata deve ser a resposta aos movimentos recebidos, mais a ação se assemelha a impulso mecânico. Por outro lado, quanto mais essa ação se torna incerta ou indeterminada, mais a percepção se parece com um modo de organização de complexidade crescente que permite ao ser vivo avaliar qual seria a melhor ou mais adequada ação a ser adotada.

Da maior amplitude da percepção decorre uma maior indeterminação da ação. Quanto mais pontos de contato no espaço estiverem em relação com o ser vivo, maior a sua independência, maior a sua liberdade de ação. E liberdade aqui é tão somente a medida do tempo que a ação dispõe: quanto mais tempo, mais livre ou indeterminada é a ação, cujo contraponto é a ação imediata e mecânica, de natureza estritamente impulsiva.

Tendo estas considerações por fundamento, Bergson enuncia o que é uma lei natural explicativa do modo como a percepção e a ação se relacionam com o tempo e o espaço: a percepção dispõe do espaço na exata proporção em que a ação dispõe do tempo (BERGSON, 2010a, p. 29).

Referências:
 
BERGSON, Henri. Matière et Mémoire: essai sur la relation du corps à l’esprit. Le Choc Bergson. Édition critique. 8ª edição, Paris: PUF, 2010.
 
_______________. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução Paulo Neves. 4ª edição, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010a.

RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Livro Quarto. Tradução de Brenno Silveira. 3ª edição, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.

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