sexta-feira, 26 de novembro de 2010

I - Percepção consciente e ação humana *

Análise do primeiro capítulo de Matéria e Memória, de Henri Bergson

Introdução

“Matéria e Memória” foi escrito em 1896. É a segunda obra de Henri Bergson, antecedida pelo “Ensaio sobre os dados imediatos da consciência”, de 1889.

Ao tempo da publicação, Bergson tinha 37 anos e ensinava Filosofia no Liceu Henri-IV de Paris. Seu nome ainda não era reconhecido entre os colegas de trabalho. “Matéria e Memória” é considerado um ponto de transição no caminho que levou o autor à recepção do grande público, que ocorre com a sua nomeação para o Collège de France, em 1900, e definitivamente com a publicação de “Evolução Criadora”, em 1907 (WORMS, 1997, p. 3).

O tema tratado por Bergson nesta obra é clássico: o problema da união da alma e do corpo, o dualismo representado em grandes linhas pela relação entre o universo e a subjetividade.

O título da obra enuncia um dualismo que contrapõe a realidade da matéria à uma função psicológica, a memória. Este é o primeiro aspecto surpreendente a ser observado, já que, tradicionalmente, a contraposição conhecida dava-se na oposição entre matéria e espírito.

O subtítulo, “Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito”, retoma o dualismo do título e cria uma espécie de cruzamento sintático ou efeito espelho: a matéria do título encarna no corpo do subtítulo, enquanto a memória é assimilada pela realidade do espírito (WORMS, 1997, p. 2).

A obra é estruturada em quatro capítulos:

I – Da seleção das imagens para a representação. O papel do corpo;

II – Do reconhecimento das imagens. A memória e o cérebro;

III – Da sobrevivência das imagens. A memória e o espírito;

IV – Da delimitação e da fixação das imagens. Percepção e matéria. Alma e corpo.

A publicação de “Matéria e Memória” ocorre num período de efervescência da Psicologia na França. Um dos temas do momento era, justamente, a memória. Bergson escreve seu texto dentro desse contexto muito específico e suas ideias são, de um certo modo, uma reação à outra obra publicada no mesmo período, em 1881, Maladies de la mémoire, de Théodule Ribot, autor citado em várias passagens do texto.

Ribot era um filósofo amigo e contemporâneo de Bergson. É considerado o fundador da Psicologia científica francesa. Foi o responsável por incluir a Psicologia nos estudos universitários na França e os seus estudos sobre a memória são especialmente célebres. Bergson publicou, antes de 1896, partes de “Matéria e Memória” mais voltadas para Psicologia na Revue Philosophique de La France et de l’Étranger, que era dirigida à época pelo mesmo T. Ribot.

Entretanto, a noção de memória de Ribot contrasta muito com aquela defendida por Bergson. Ribot defende a ideia segundo a qual as lembranças estão localizadas em alguma parte do cérebro, sendo, portanto, entes materiais. Diferente de Bergson, que atribui à memória uma característica estritamente imaterial e considera o cérebro uma central telefônica que orienta a memória para as ações. O conjunto das lembranças, a memória, é inserido no presente com vistas exclusivamente à ação do corpo. Nem mesmo lesões no cérebro são capazes de apagar as memórias, mas apenas dificultar ou inviabilizar as ações ou movimentos do corpo (LE CHOC BERGSON, 2010, pp. 290, 291 e 346).

Ribot, de modo totalmente diferente, considera que os elementos espirituais podem ser reduzidos à matéria. Os sentimentos são efeitos da atividade fisiológica, decorrem de reações químicas. E a sua obra sobre as doenças da memória é uma referência importante da Psicologia, ao menos no período entre a sua publicação (1881) e o início da Segunda Guerra Mundial. Ele se vale em parte das observações da Medicina e da Psiquiatria para formular suas teses sobre a memória, analisando-a a partir das doenças que a afetam e a dissolvem.

Bergson faz constantes referências e críticas em seu texto aos estudos da Psicologia do seu tempo e, quando o faz, está voltado em regra aos estudos de Ribot sobre a memória.

Neste trabalho faremos a análise do primeiro capítulo de “Matéria e Memória”, destacando para tanto uma frase do texto que nos pareceu a melhor síntese do mesmo: A percepção dispõe do espaço na exata proporção que a ação dispõe do tempo (BERGSON, 2010a, p. 29).

Na primeira parte analisaremos a noção de percepção vinculada ao espaço, sendo que na segunda a percepção será cindida e separada da memória.


Referências:


BERGSON, Henri. Matière et Mémoire: essai sur la relation du corps à l’esprit. Le Choc Bergson. Édition critique. 8ª edição, Paris: PUF, 2010.


_______________. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução Paulo Neves. 4ª edição, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010a.


WORMS, Frédéric. Introduction à Matière et mémoire de Bergson. Paris: PUF, 1997.

(continua na próxima postagem)
 
* trabalho apresentado no dia 24-11-2010, em conjunto com o colega ANDRÉ RODRIGO BOCHI, na Faculdade de Filosofia da PUC-RS, em História da Filosofia Contemporânea II, coordenada pelo Prof. André Brayner Farias.

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