sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Ambiguidade e hermenêutica

Marco Antonio Schmitt
A busca da verdade e da certeza é finalidade legítima para o conhecimento filosófico e, certamente, foi ela que guiou até hoje os grandes autores da área. Se o sucesso dessa empreitada teórica foi, em todos os casos, confirmado em sua globalidade, ou em parte, apenas por aproximação, isso já é outro problema.
O que se pode afirmar com alguma segurança é que essa antiga busca expôs desde sempre uma grande dificuldade da Filosofia: a sua relação com a linguagem. Como expressar em proposições linguísticas os objetos de interesse filosófico, sua peculiaridade e modo de operar? As palavras disponíveis em nosso vocabulário, nas mais diferentes línguas, são suficientes ou adequadas para tanto?
A linguagem é a nossa mediação por excelência com o mundo, com os entes que nos cercam. Cabe a ela disponibilizar palavras e formar proposições que sejam adequadas para descrever os diferentes problemas filosóficos, seja na Metafísica, seja na Lógica, ou até mesmo na Filosofia Política. Ela deve estar preparada para dar conta dos muitos sentidos que nós, sujeitos, queremos atribuir aos objetos do mundo.
Esta atividade de atribuir sentido, apesar do verbo “querer” que empregamos na frase anterior, não está no âmbito da nossa vontade. Enquanto seres humanos, estamos biologicamente preparados para atribuir sentido de modo absolutamente involuntário, sem qualquer reflexão prévia. Diante de uma centenária figueira, somos impelidos a dizer “árvore”; sentados à mesa de almoçar, quando nos servem um prato somos impelidos a dizer “comida” ou “carne”, ou “fome”; quando nos deparamos com a capa de um livro com a pintura da “Escola de Atenas” de Rafael, os familiarizados com a Filosofia serão levados a dizer “Platão e Aristóteles”, por exemplo, que são as figuras centrais da obra.
Para estas três simplórias situações parece que temos uma linguagem rica e adequada para atribuir sentido. Entretanto, a Filosofia e seus inúmeros problemas teóricos não encontram todas as vezes a mesma simplicidade. A linguagem fica mais restrita, assume um caráter técnico mais rígido e passa a utilizar palavras, expressões e proposições com sentidos únicos dentre vários linguisticamente possíveis. E é então que nos deparamos com a polissemia e a ambiguidade.
A polissemia é uma inconsistência da linguagem pela qual uma palavra ou locução tem mais de um significado, por força do uso metafórico ou do empréstimo de acepção que a palavra apresenta em outra língua. E a ambiguidade é uma situação parecida, na qual uma determinada palavra ou expressão permite que o enunciado em que ela está inserida seja interpretável de várias formas. São vícios de linguagem com os quais convivem todos aqueles que dependem da língua escrita, entre eles, os filósofos.
E conviver com a ambiguidade é uma expectativa que o filósofo deveria assimilar desde os primeiros dias em que senta nos bancos universitários.
É correto dizer, inclusive, que o os estudiosos da Filosofia que não tenham esta angustiante deficiência bem presente ao final da sua formação, passaram em vão os anos do curso para o qual se graduaram. Ou nada leram das grandes obras, ou as leram e decoraram, ou simplesmente as leram com o cuidado de quem lê uma revista semanal.
E a primeira diferença da revista de variedades semanal e um texto filosófico é a tecnicidade do último. Não há como ser preciso e permitir que o conhecimento tornado público seja efetivamente compreendido se não houver a adoção de um vocabulário mínimo, de caráter técnico. Conceitos fundamentais, noções iniciais, frases que evitem potenciais contradições, são requisitos mínimos para uma linguagem fielmente filosófica.
A questão é que, mesmo adotando um vocabulário técnico adequado, que seja ao menos coerente, a dificuldade de se obter bons resultados na mediação linguística é grande. Primeiro porque isso apenas ameniza os vícios da polissemia e da ambiguidade. Segundo, porque a riqueza da vida filosófica exige um constante aprimoramento de termos e de significados. O material bruto intuído pelos filósofos nem sempre encontra mediações linguísticas que lhe sejam suficientemente claras.
Há uma interessante metáfora citada por Henri Bergson em sua “Introdução à Metafísica”, de 1903, que ilumina de algum modo essa situação. Em certa passagem, Bergson compara as intuições dos grandes mestres da Filosofia, as quais deram causa à formação de escolas e de fileiras de discípulos, ao ato de dragar o fundo do mar. Desse ato de dragagem, os grandes pensadores retiram um material bruto que precisa passar por diversas triagens. Essas triagens são análises, separação em partes e subdivisão em outras tantas. Tal trabalho cabe basicamente aos discípulos que seguem o trabalho iniciado pelo mestre.
A primeira mediação para apresentar o material encontrado se dá pela linguagem metafórica. Esta o próprio pensador já utiliza para esclarecer o resultado das suas intuições mais importantes. Certamente aí já se tem graus de clareza e a metáfora será mais ou menos eficiente.
A segunda mediação se dá com a expressão linguística. A linguagem escrita permite ao filósofo objetivar e desvincular de si mesmo o conteúdo que, de maneira tão privilegiada, ele alcançou. A objetivação é condição de possibilidade para haja conhecimento filosófico e também para que este possa ser lançado no debate público. Sem linguagem e sem debate público, não há conhecimento filosófico. A crença meramente internalizada, que conhece apenas a subjetividade, não pode ser avaliada sob o critério da verdade e nem ter verificada a sua fundamentação. Sua condição limitada poderia apenas constituir fundamento para alguma seita ou movimento equivalente apartado da racionalidade.
A linguagem, entretanto, não é absolutamente suficiente para os fins de mediação do conhecimento filosófico que é extraído via intuição e apresentado inicialmente por metáforas. A dificuldade de manipular os signos linguísticos e de aplicá-los com precisão deixa o filósofo inseguro em sua atividade. A ambiguidade e a polissemia são fantasmas que estão sempre espreitando a escrita filosófica.
Tomemos como exemplo o termo “intuição”. O significado mais genérico desta palavra é o de percepção de objetos independentemente de análise e raciocínio. Na linguagem técnica da Filosofia, a forma mais geral de significado é a de um conhecimento direto de objetos, sem a mediação de conceitos. Mas não é esta a acepção da mesma palavra em Bergson, para quem a intuição é uma capacidade cognitiva que contrasta com a inteligência: enquanto a primeira é o modo indicado para o conhecimento metafísico, de se colocar no objeto em movimento e não descrevê-lo a partir de uma visão externa, ou conhecer intimamente o espírito pelo espírito, a segunda é a capacidade humana voltada para a ação, de modo a preparar a reação do nosso corpo aos estímulos externos.
No mesmo texto da “Introdução” de 1903, Bergson revela em nota de rodapé que hesitou muito antes de adotar o termo “intuição” para a sua Filosofia e, quando o fez, teve que adaptar seu significado usual, modificando-o. Tem-se aqui um exemplo de polissemia: a intuição será mais aquilo que o filósofo intuiu originalmente do que o seu significado ordinário.
Em outros casos, o Filósofo precisa criar termos novos em sua língua para objetivar seu conhecimento. É o caso da duração bergsoniana, por exemplo. A duração é um termo que assume um significado muito peculiar em Bergson, ao definir a sucessão de estados de consciência vivenciados por determinado sujeito.
Termos heideggerianos, como o “ser-aí” ou o “ser-no-mundo”, são outra demonstração da criatividade necessária ao filósofo para verbalizar suas intuições. Verbos se tornam substantivos, substantivos se unem para formar palavras compostas até então inéditas, entre outras habilidosas maneiras de manipular palavras: estes são os modos da linguagem filosófica.
Estes termos novos, quando inseridos em proposições maiores, criam situações de relativa ambiguidade. Lendo a “Crítica da Razão Pura”, de Kant, por exemplo, essa situação de inconsistência de linguagem é encontrada praticamente em cada página.
Entretanto, a Filosofia não está completamente indefesa para fazer frente às ambiguidades. Ela deve se preocupar em reduzi-las e não conviver com elas, como é o caso da poesia e da literatura romanesca em geral.
A Hermenêutica Filosófica, na sua formatação tradicional, é esta espécie de mecanismo de controle interno da Filosofia para fins linguístico-interpretativos. Tendo-se como certo que a linguagem é uma segunda natureza do ser humano, que a comunicação e o dizer algo sobre algo depende daquela mesma de modo intrínseco, coube à Hermenêutica organizar uma estrutura de meta-conhecimento que assumiu o papel de condicionar as possibilidades de sentido das proposições filosóficas.
Este é um modo de conceber a Hermenêutica Filosófica. Emilio Betti, em sua obra de 1964, intitulada Teoria della interpretatione, é um dos seus defensores. A Hermenêutica na visão de Betti deve se ater às proposições filosóficas e às questões epistemológicas que delas são decorrentes. Segue, portanto, uma tradição iniciada ainda no século XIX por Schleiermacher e Dilthey.
Uma Hermenêutica stricto sensu como esta é o parâmetro teórico ideal para o Direito, na interpretação das leis, e para a Teologia, na interpretação bíblica. Os textos sagrados e a lei, cuja característica comum é a obscuridade diante dos fatos da vida, precisam ser interpretados constantemente para manter a sua atualidade, para que não percam de vista a sua teleologia original, para que reafirmem o seu contexto e não tenham fatos indevidamente subsumidos aos seus suportes fáticos. Dito de outra maneira, a Hermenêutica stricto sensu é garantia de sobrevida dos textos jurídicos e sagrados diante da realidade movente e cambiante.
Há, todavia, outra via que a Hermenêutica Filosófica pode seguir. Ao invés de assumir apenas um papel formal de controle e interpretação das proposições e das suas possíveis ambiguidades e polissemias, a Hermenêutica pode ser concebida como um modus ontológico. Heidegger dizia que a atividade de compreensão vai muito além da interpretação de textos, ela é um modo de ser, uma característica do ser humano, do Dasein. Antes mesmo que qualquer consideração teórica seja assumida ou construída, o ser humano já é portador de uma pré-compreensão do mundo. As coisas básicas do mundo nos são familiares, intuitivamente. Não é necessário reunir diferentes e ordenadas proposições sobre as mais diversas crenças que mantemos para que nos movamos pragmaticamente no mundo, pois ele é tacitamente inteligível para nós. A nossa natureza pré-compreensiva é, portanto, uma Hermenêutica. Nosso modo de ser no mundo é interpretativo, é hermenêutico, e a Filosofia deve se ater principalmente à análise dessa pré-compreensão e fazê-la seu objeto.
Portanto, se a proposta de Heidegger estiver correta, podemos afirmar que a nossa própria natureza é hermenêutica. Nossa posição original no mundo exige uma inevitável e constante busca de sentido e atribuição de sentido aos mais diferentes objetos ou entes. A ambiguidade, que é criadora de múltiplos sentidos no contexto linguístico para uma mesma proposição, neste caso assume uma posição ainda mais decisiva: ela se materializa. A natureza humana tem a ambiguidade como característica e como ponto a superar desde que estamos no mundo. A realidade é fonte potencial de ambiguidades e nós estamos na constante busca da sua eliminação. Dito de outra maneira, uma Hermenêutica ontológica trava seus embates com ambiguidades materiais que vão muito além dos textos.

Voltando ao problema inicial, a linguagem como mediadora da realidade frente ao sujeito tem a marca da ambiguidade e da insuficiência, exigindo, por isso, uma constante interpretação e readequação para que permaneça direcionada à verdade. A linguagem, entretanto, não é por si insuficiente. Há uma ambiguidade material e pré-compreensiva da nossa natureza humana que também é geradora de inconsistências para a mediação a que propõe a linguagem.
É conveniente, portanto, pensar a Hermenêutica filosófica como um modo de lidar com predicados afirmados sobre o mundo, mas também como um modo de ser no mundo, no qual nós somos educados para pré-compreender tudo. A Hermenêutica, esteja ela voltada apenas para os textos, ou integralmente para o Dasein, terá pela frente a ambiguidade e para ela precisará apontar soluções.
(Ensaio apresentado para a disciplina de Hermenêutica Filosófica, semestre 2011/2, Prof. Dr. Ernildo Stein, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da PUC-RS, Porto Alegre).