sexta-feira, 30 de julho de 2010

III – Repetir, padronizar e diferenciar: o movimento de síntese do pensamento

Marco Antonio Schmitt

Este é o terceiro ensaio no qual pretendo descrever, ainda de forma absolutamente intuitiva, o que são as estruturas mais básicas do pensamento. Aqui o objetivo é concluir a primeira tríade e afirmar que as duas estruturas estáticas anteriormente apresentadas – autorreferência e começo – compõem o ato de pensar enquanto movimento que se apoia na repetição, induzindo uma sequência que alterna padronização e diferenciação.

A repetição e a formação de padrões – de comportamento, de atividades – são comuns em nossa vida diária, tanto no lugar onde moramos e trabalhamos, quanto na nossa casa e no nosso modo de sobreviver.

A cidade onde nos estabelecemos está assentada na repetição diária de infinitas ações e atividades padronizadas. Diariamente as ruas mantêm os mesmos sentidos de direção, os sinais de trânsito são os mesmos, as linhas de ônibus fazem o mesmo percurso, os restaurantes servem refeições nos mesmos lugares e horários, os cardápios desses restaurantes são os mesmos dentro de certos períodos de tempo, os hospitais recebem e tratam pacientes nos mesmos lugares, as redes de televisão e rádio apresentam a mesma programação, entre outras tantas situações que poderiam ser descritas. Qualquer alteração de tais rotinas, em regra, exige alguma forma de informação que possa evitar o efeito da surpresa. De outro modo, a quebra da rotina por circunstâncias inevitáveis, como acidentes e outros fatos que fogem ao controle da previsibilidade, novamente interrompe uma expectativa de repetição e aciona outra série de atos que visam retomar a normalidade – a repetição anterior.

O lugar onde moramos também tem sua estrutura básica assentada em repetições, algumas vezes mais e outras menos visíveis. No caso de um prédio de apartamentos, a repetição de ações no condomínio é inerente à sua própria existência. Diariamente os elevadores atendem aos mesmos andares, os serviços de limpeza recolhem o lixo, os portões das saídas de garagem abrem para a saída dos automóveis, os porteiros abrem as portas e trocam de turno nos mesmos horários. Para cada possível interrupção já há uma rotina de normalização pronta: serviço de manutenção de elevadores, substitutos dos porteiros, sempre no sentido de retomar a repetição.

Biologicamente também adotamos rotinas, repetição de ações, que favorecem a nossa sobrevivência. Respiração, alimentação e horas de sono se repetem, momento após momento, dia após dia. Rotinas que, se seguidas em padrões rígidos, são melhor assimiladas pelo nosso organismo, o qual, comprovadamente, adapta-se melhor e se mantém mais saudável com a repetição de horários e tipos de alimentação, de horários para dormir e para acordar.

O pensamento se movimenta de modo análogo.

A partir de um começo pensado com justificativas lógicas, o ato de pensar se coloca em movimento. A cada pequeno deslocamento, estimulado pela percepção, o ato de pensar pressupõe o passo inicial anterior que o fundamenta e lhe garante sentido. A cada novo movimento, repete-se a mesma situação: volta-se ao ponto de partida, agrega-se sentido e um novo círculo do entendimento se fecha.

A busca incessante do sentido está, portanto, na base da repetição descrita. Ela se impõe como razão necessária e insuperável para que, em termos bastante gerais, o sujeito possa compreender.

Já a autorreferência se apresenta como epifenômeno do movimento de repetição. A cada repetição, a cada busca do ponto de partida, o pensamento termina por reconhecer-se a si como o mesmo, sempre o mesmo em momentos diferentes. Permite, assim, que se diferencie do mundo enquanto ente, enquanto ser que não se dilui no mundo que o cerca. E este é o contraponto da padronização anterior: a autorreferência torna possível pensar a diferença. O movimento se repete para se diferenciar mais adiante.

Esse epifenômeno decorrente de um constante e repetitivo movimento de retorno e avanço em torno de um ponto de partida do ato de pensar, é o que propicia outras condições essenciais para a existência. A formação da memória, a autoidentificação, a linguagem e a comunicação são exemplos.

As falhas desse movimento, quando há quebra do padrão estabelecido, dão causa às distorções dos demais elementos. A memória de certos eventos desaparece na medida em que eles não foram identificados corretamente e atribuídos ao sujeito que pensa. E assim por diante.

E o que seria conatural ao pensamento, em resposta ao questionamento do primeiro ensaio? Conaturais são as estruturas por ele reconhecidas no movimento de repetição. A autorreferência não está na linha de repetição de estruturas, mas decorre dela, é um epifenômeno do padrão criado. Por isso que ela não é naturalmente reconhecida, enquanto objeto da percepção, como estrutura válida pelo pensamento, e tende a ser identificada como uma contradição.

Como pode soar tão estranho um ensaio como este, sobre como alguém percebe as suas próprias estruturas mentais funcionando? Primeiro, as limitações da linguagem certamente não alcançam a complexidade inerente àquelas estruturas. Segundo, paradoxalmente, o movimento de repetição e autorreferencial do pensamento não consegue apreender a si mesmo, com precisão.

Portanto, há uma forte relação entre o movimento do ato de pensar e a busca de sentido. Esta faz com que o pensamento se volte, constantemente, para o seu ponto referencial inicial e, dessa forma, crie uma infinita repetição de estruturas. Essas estruturas alternam resultados de padronização e diferenciação, isto é, ao mesmo tempo em que inserem os dados da percepção em padrões que se tornam compreensíveis, diferenciam os vários componentes do mundo e suas manifestações. Desse movimento resulta um epifenômeno de natureza autorreferencial, no qual o pensamento se identifica como o mesmo em diferentes momentos, o que se poderia chamar de consciência. Repetir, padronizar, diferenciar.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

II - Pensar é pensar um começo

Marco Antonio Schmitt


A primeira vez que me deparei com a obra do Prof. Stein, intitulada “Pensar é pensar a diferença” (STEIN, E., Pensar é pensar a diferença – Filosofia e Conhecimento Empírico, Ijuí, Editora Unijui, 2002) tive a impressão que aquela pequena frase condensava uma série de conclusões importantes sobre o ato de pensar, mas certamente não abrangia a etapa verdadeiramente inicial do processo.

Para os fins deste ensaio, sem ignorar os estudos já realizados nesta área, considero que pensamento é um processo formado por incontáveis etapas, as quais não formam uma série própria e exclusivamente ordenada. São passos que se sucedem infinitamente, ocorrem de modo simples ou simultâneo e avaliam, ao mesmo tempo, incontáveis hipóteses, de algum modo voltado para uma finalidade. Há um objetivo a alcançar, momentâneo e imediato, ou que se projeta no futuro, para o qual essas etapas se orientam.

Pensar é pensar a diferença” denota também uma característica que permeia o ato de pensar a todo instante, que é a autorreferência. A descrição do próprio pensamento é, assim, autorreferencial. Para falar dele, de consciência, do mundo, o pensamento se volta sobre si para então se projetar. Ele primeiro se reconhece, depois supera a barreira do indiferenciado e, por fim, passa a operar, conceituando objetos, classificando-os, emitindo juízos.

As etapas citadas ocorrem tão rapidamente que a sua observação força-nos a concluir pela sua pressuposição. Todos os atos humanos pressupõe uma série de operações do pensamento que contrastam pela complexidade do seu conjunto e pela simplicidade das pequenas partes que o compõem.

O intrigante nessas operações é responder a certas perguntas: há um verdadeiro começo no ato de pensar? Em que consistiria esse começo? Qual a razão para que na sua própria capacidade de autoanálise esse questionamento surja?

Lembro que nos tempos da minha adolescência, não poucas vezes me vinha uma questão semelhante. Eu me perguntava qual seria a primeira palavra que eu pensaria, se me fosse dado um ponto de partida absoluto – quer dizer, se alguém me dissesse para fechar os olhos, suspender o juízo sobre tudo e, após uma contagem até dez, voltar à realidade como se a visse pela primeira vez. Ficava imaginando qual seria a reação de amigos meus para essa mesma experiência.

Nunca cheguei a perguntar a algum deles sobre isso, com medo de ser repreendido. Por outro lado, ficava esperando que alguém a fizesse para mim, e aí eu teria uma resposta, pois ela fora elaborada com muito cuidado.

A resposta para o ponto de partida absoluto do pensamento poderia ser uma letra – a primeira do alfabeto, pensava eu – ou um número, ou uma expressão, ou uma única palavra. Mas haveria de ter esse primeiro degrau a ser alcançado.

Pois esse ponto de partida absoluto chamava-se “casa”. Esta teria sido a minha primeira reação ao visualizar o mundo pela primeira vez e ser capaz de pensá-lo como alvo da minha percepção. A especulação ia até certo ponto apenas, tentando achar uma justificativa por não ser outra palavra, como “mãe”, “pai”, “Deus”, “A” ou “Y”, mas ela não foi encontrada.

A explicação por se optar pela palavra “casa” está, certamente, em alguma vivência ou memória que faça da casa algo muito importante. Ou pelo simples fato de ela ser a garantia de integridade do próprio pensamento, ou por ser a referência de prazer ou satisfação.

E por que haveria de se pensar um ponto de partida para o pensamento?

Aqui é possível traçar um primeiro paralelo com o mundo. Essa mesma pergunta é feita há séculos quanto à origem do universo. Não é por outra razão que as pesquisas científicas se voltam para tantas frentes em busca de respostas para o início da vida ou o ambiente original que possibilitou a sua criação. Concorrem ainda na mesma busca as várias religiões.

Nessas observações preliminares o que se verifica é uma relativa coincidência entre o modo de pensar e o mundo. Quer dizer, o ato humano de pensar busca em seus diferentes modos de conhecer o mundo e a si mesmo uma estrutura comum. Há um começo necessário para o pensamento, há um começo necessário para o mundo, há um começo necessário para as várias etapas que compõem o continuum da consciência. Um começo que permite pensar a diferença entre agora e antes, entre antes e ainda antes. O ponto de partida que torna possível avaliar a contradição e a não-contradição, que novamente se projeta para o mundo: se é possível pensar a contradição, o pensamento a exclui para preservar o sentido.

Os diferentes momentos projetados pelo começo estabelecido, encadeados de modo sucessivo e, ao menos, parcialmente ordenados, são os condutores do que se poderia chamar de sentido. A noção do começo permite pensar em sentido e é com ela que a não-contradição se afirma.

Há, portanto, uma relação necessária entre pensamento e começo. A estrutura de natureza lógica que possibilita a construção do sentido requer o ponto de partida, o início de tudo. O pensamento opera assim para se afirmar como consciência e afastar a contradição. Depois, como Hegel antecipava em sua obra no início do século XIX, a estrutura lógica do pensamento se projeta sobre a estrutura lógica do mundo. Ambas coincidem necessariamente sob pena de inconsistência. Pensar, portanto, é antes de pensar a diferença, pensar um começo.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

I - Autorreferência e inquietação: por que situações autorreferenciais (não) são conaturais ao pensamento

Marco Antonio Schmitt

Este ensaio não é o resultado de uma pesquisa bibliográfica. Ele também não advém de observações realizadas num laboratório de pesquisas. Não é também a descrição de um sonho. Não é a descrição de um fato observado nas ruas. Não é uma apresentação do próprio autor. Não é propriamente um ensaio.

Afora o excesso de “nãos” utilizados, o parágrafo anterior causa uma perplexidade imediata ao pensamento por estar descrevendo uma contradição. Ou se trata de um ensaio, ou não se trata de um ensaio.

A perplexidade, neste caso em especial, é uma forma de recusa. O pensamento não assimila, não aceita, não torna viável a frase que faz do ensaio um não-ensaio. É possível dizer, portanto, que a contradição não é conatural à estrutura lógica que orienta ordinariamente o ato de pensar.

Há, também, outra situação que causa um efeito semelhante à anterior que é a circularidade ou autorreferência. Pensar sobre si mesmo, reconhecer-se num espelho ou, simplesmente, andar em círculos, são situações que desordinarizam o pensamento. Qual a razão disso? Aparentemente, estas também são situações que não podem ser consideradas conaturais ao modo ordinário de pensar.

Para melhor perceber o que se está tentando dizer, vou relatar três situações que ilustram tais impressões.

A primeira delas é contada por Douglas Hofstadter em seu I am a Strange Loop, e que em algum momento do meu passado já havia sido por mim imaginada.

Hofstadter conta que, ainda nos de 1970, seus pais resolveram comprar uma câmera de vídeo. Chegando à loja, lá estavam instalados vários aparelhos de televisão e, num deles, estava conectada uma câmera direcionada ao público. Dessa forma, os consumidores conseguiam se ver na televisão e ter uma noção do funcionamento do aparelho.

A câmera podia ser direcionada em várias direções, inclusive para o próprio televisor que transmitia as imagens que captava. Com isso, restaria fechado o circuito referencial: a câmera passaria a captar a imagem da própria televisão que reproduz as cenas por ela captadas. Receoso do que poderia acontecer com tal movimento, o autor perguntou ao atendente da loja se autorizava fazê-lo. A resposta foi rápida e nervosa: não, não faça isso, assim você danificará a câmera. Mais tarde, já em casa, Hofstadter fez o que o atendente havia proibido e verificou que, como era de se esperar, nada de indesejável aconteceu.

A segunda situação de autorreferência é parte do filme “Quero ser John Malkovich”, no qual o famoso ator interpreta a si mesmo, embora não seja essa a circularidade mais interessante.

Os personagens da trama encontram um misterioso túnel atrás de alguns arquivos de aço. Quando um deles vai verificar para onde este túnel levava, descobre que ele acaba na consciência do ator John Malkovich e permanece lá por alguns minutos, sendo que após é jogado na beira de uma autoestrada.

Essa situação passa a ser explorada economicamente, oferecendo-se mediante pagamento a oportunidade a qualquer pessoa ser John Malkovich por alguns minutos, vendo o que ele vê, fazendo o que ele faz, assumindo, enfim, a sua personalidade temporariamente.

Quando essa sucessão de intrusos na consciência começa a perturbar e mesmo a interferir no seu modo de ser, Malkovich investiga e descobre a existência do túnel e entra nele também. É neste instante que surgem as perturbadoras imagens da autorreferência.

O mundo de John Malkovich visto por ele em-si-mesmado é formado por homens e mulheres com rostos iguais ao dele. Todos falam uma mesma língua, cujas frases são diferentes entonações da palavra “Malkovich”. O cardápio oferece opções de comida e bebida, todas nominadas “Malkovich”. Há apenas um único John que vê tudo isso, fica ofegante e sai correndo, procurando uma saída desse mundo indiferenciado.

A terceira situação é um fato curioso que aconteceu na minha infância.

O filho de um vizinho, após um grave acidente automobilístico, sofrera danos irreparáveis à sua integridade física e mental. Um dos efeitos mais visíveis por todos que o conheceram foram as intermináveis caminhadas que passou a fazer. Saía dos fundos da casa, dirigia-se até a via pública por uma passagem entre arbustos, estendia-se por mais alguns metros, dava meia-volta e retornava aos fundos. Mesmo em períodos de muito frio, ou de chuva, ou de intenso calor, essa cena se repetia. Talvez com menor frequência nestas épocas, mas não havia longas interrupções. O trajeto do vizinho caminhante era levemente circular, já que não voltava sobre os mesmos passos, nem o fazia de costas. Nunca se soube as exatas razões para que ele agisse daquela forma.

Eu ficava imaginando uma conversa com aquela estranha pessoa, na qual a primeira coisa que eu lhe teria perguntado seria “por que você está caminhando em círculos o dia todo há tanto tempo?” Imaginava, também, que ele não teria uma resposta a dar, afinal a sua capacidade de pensar e agir sofria de uma deficiência que não lhe permitiria dizer algo sobre si. Por outro lado, se houvesse uma resposta possível, ela poderia ter sido “caminho desse modo por recomendação médica, para melhorar a minha forma física e, assim, acelerar a minha recuperação”. Mas isso continuaria não dando as razões para aquele errático caminhar em círculo.

Na primeira situação, da câmera de vídeo, o vendedor de aparelhos eletrônicos reagiu de modo contundente para impedir que Hofstadter a direcionasse para o televisor e, assim, fechasse o circuito de imagens autorreferenciais. Alguma razão técnica? Não, uma falsa razão técnica que velava uma intuição: autorreferenciar a imagem estraga a câmera.

Na segunda situação, a autoconsciência vista por ela mesma, voltando-se sobre si, produziu um mundo aberrante e desconfortável para Malkovich. Um mundo em que a indiferenciação é a regra e a consciência se perde dentro de si mesma.

Na terceira situação, a repetição da caminhada em círculos sem motivo aparente ou declarado, intriga e assusta. Seria possível dela tirar alguma conclusão que não fosse meramente especulativa?

A questão me parece ser esta: como estes movimentos autorreferenciais são assimilados pelo pensamento? Eles são, à primeira vista, inquietantes, porque não há como prever exatamente o seu resultado – para onde eles conduzem o sujeito – ou porque não se encontra sentido naquele movimento.

Em outras palavras, movimentos autorreferenciais não são conaturais ao pensamento. O movimento do ato de pensar não é, ordinariamente, circular ou autorreferente. Ao menos, ele não se percebe assim.

No momento em que ele se depara com situações que assim se parecem, ele as recusa enquanto formas válidas. Supera a recusa, volta-se sobre si e elabora um modo de interpretá-las. Com isso, recupera o sentido e volta a se conectar com o mundo que o cerca. E aqui um ponto que merecerá investigação a posteriori: a superação e a elaboração passam pela avaliação das estruturas lógicas. Se a autorreferência não for mais interpretada como uma contradição, o processo de elaboração foi efetivo. Falhando a elaboração, o pensamento retoma a superação e segue numa relação circular até que um elemento novo apague o que pode ser chamado de nó.

Como tais questões estão reportadas em estudos já realizados pela Psicologia e pela Filosofia da Mente é o que pretendo tratar nos próximos ensaios:

a) qual a relação entre regras lógicas e pensamento;

b) o que são situações conaturais ao pensamento;

c) a autorreferência é conatural ao modo de pensar, embora este não consiga assimilá-la naturalmente em situações que lhe são oferecidas como objetos;

d) a consciência é um modo de autorreferência do pensamento que vela a sua estrutura formal;

e) falsas intuições limitam o pensamento e podem formar barreiras não-racionais de assimilação da realidade.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

John Locke e os papagaios brasileiros do século XVII

Marco Antonio Schmitt

Identidade pessoal, consciência, sujeito, pessoa e ser humano são importantes noções para diferentes áreas do conhecimento. Os estudos da Filosofia foram, certamente, os primeiros a discuti-las. Mais à frente, a Psicologia se especializou e no seu campo próprio de estudo assimilou tais noções para aplicá-las também na área clínica. A identificação e a cura de patologias relacionadas à personalidade não podem delas prescindir. Também são importantes no Direito, como no caso da noção de sujeito para a definição das regras sobre responsabilidade.
Na Filosofia a identidade mereceu destaque na obra de John Locke, que escreveu sobre o tema em 1690, no seu “Ensaio sobre o Entendimento Humano”. O Ensaio não trata de forma exclusiva do tema da identidade pessoal, mas oferece uma importante contribuição para compreendê-la.
Locke diferencia as noções de homem e pessoa. Enquanto a primeira é relacionada apenas ao corpo como animal vivo, “pessoa” tem um grau de abstração maior e se refere ao ser racional e consciente da própria existência contínua.
A consciência contínua implica o ato de reconhecer para si os atos praticados anteriormente no tempo, o que faz com que a existência fique vinculada à temporalidade e não mais à essência. Dito de outro modo, a identidade passa a ser pensada enquanto reflexividade e memória e não mais como substância. A consciência volta-se sobre si mesma, o tempo todo, a cada instante, e faz desse continuum uma sucessão de memórias encadeadas de modo coerente e sempre atribuídas a uma mesma identidade.
Já a noção de homem não é construída a partir da consciência, nem da palavra que exterioriza o pensamento, nem é suficientemente descrita como ser pensante e racional, que é a definição clássica. O homem de Locke é um animal com uma certa forma corporal. Essa forma corporal humana é que determina o que é o homem. Mesmo que esse animal com a forma reconhecidamente humana não tenha mais razão que um gato ou um papagaio, ele ainda continuará sendo um homem. E o contrário, se um papagaio ou um gato filosofassem ou discorressem muito bem sobre determinado objeto, ainda sim continuariam sendo apenas um papagaio ou um gato muito esperto (LOCKE, Livro II, Cap. XXVII, § 8).
Para ilustrar o argumento, Locke apresenta a história do papagaio brasileiro do príncipe holandês Maurício de Nassau, contada a ele por um interlocutor e não diretamente pelo nobre senhor.
Segundo o relato, Maurício de Nassau, no período em que foi governador no Brasil, conhecera um velho papagaio que falava muito bem, respondia a todas as perguntas que lhe eram feitas de modo coerente e, aparentemente, tinha uma capacidade racional bastante sofisticada. Nas palavras de Locke, esse velho papagaio não falava a língua holandesa, mas a “língua brasileira”. Como Nassau não compreendia a língua do papagaio, fez-se acompanhar de dois intérpretes, um holandês que falava a “língua brasileira” e um brasileiro que falava a língua holandesa. Desse modo, o holandês pôde atestar com segurança a coerência do discurso da sábia ave.
Qual é o ponto de Locke nesta história?
Ele continua após o relato afirmando que ambos, o nobre holandês e o seu interlocutor, contavam a história e sempre atribuíam a capacidade excepcional de fala a um papagaio, e não a um homem. Tal observação foi o suficiente para Locke concluir que a definição de homem estava marcada pela forma humana de seu corpo. Portanto, a consciência de si, a expressão da racionalidade, o pensamento e a linguagem, se não estiverem associadas a um corpo humano, a criatura com todas essas capacidades, na definição de Locke, não será um homem.
Difícil concordar com Locke quando se tem como características mais marcantes da humanidade justamente aquelas de natureza intelectual. A identidade humana está tão marcada pelo pensamento e pela capacidade de transformar o mundo a partir das abstrações por ele criadas que a questão da forma não parece relevante.
Não se trata de confundir as noções que Locke quer diferenciar. O homem de Locke, do Ensaio, é marcado pelo aspecto biológico e por este se diferencia. Pouco importa que um asno, um dos animais mais presentes na história do homem, venha a proferir os mais belos discursos que já se ouviu: ele jamais será um homem e perecerá asno, pois a sua forma corporal não lembra a de um homem.
Mas não deveriam ser a linguagem e o discernimento os elementos diferenciadores do homem?
Não, estas são características atribuíveis a um constructo, uma obra do pensamento que é a noção de pessoa. Pensamento, linguagem, discernimento, reflexividade e consciência somente são possíveis enquanto reflexão de uma identidade. Não há tais elementos senão no pensamento que se volta sobre si mesmo e que reconhece a alteridade apenas de modo seletivo, ou seja, apenas reconhece a mesma reflexividade naqueles que lhe parecem semelhantes. Narcisicamente, o constructo que possibilita a identidade pessoal só vê o homem naquilo que com ele se parece.
E o papagaio de Nassau? E se ele tivesse recitado o poema de Camões? Não superaria ele o constructo? E se ele estivesse aqui hoje, operando um notebook e se comunicando com você usando uma identidade falsa? Ele continuaria um bípede emplumado. Sua forma é inadequada para uma pessoa.

Bibliografia indicada:
LOCKE, John. An Essay on Human Understanding, 1690.
SIMHA, André. A Consciência. Do Corpo ao Sujeito. Petrópolis: Vozes, 2009.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Vida, angústia e superação do mal

Marco Antonio Schmitt


David Hume, nos seus “Diálogos sobre a Religião Natural”, de 1779, discute a estruturação de alguns dos argumentos mais conhecidos para tratar da questão fundamental “Deus existe”. Estão lá defendidos, e com as respectivas objeções, o argumento cosmológico, segundo o qual da existência do mundo se deduz Deus; o argumento do desígnio, segundo o qual da ordem verificada no mundo se deduz a existência de um Deus ordenador; e o problema do mal, que funciona de modo inverso, ou seja, se existe um Deus onipotente e benevolente como o teísta propõe, qual a justificativa para a existência do mal e do sofrimento no mundo.

Os diálogos são conduzidos por três personagens chamados Filo, Cleanthes e Demea. Filo é o porta-voz do próprio autor, Hume, e faz o papel de um sutil defensor do ateísmo.

Já Demea tem um visão muito pessimista do mundo. Segundo ela, as pessoas levam uma vida miserável e estão inseridas numa realidade melancólica. A miséria se apresenta sob a forma de males de toda ordem, males físicos e morais. A passagem mais contundente na defesa desse modo de ver o mundo está no seguinte parágrafo, no qual Demea se dirige a Filo:

Crê em mim, Filo, a Terra inteira é amaldiçoada e poluída. Uma guerra suja perpétua está acesa entre todas as criaturas vivas. Necessidade, fome e desejo estimulam o forte e o corajoso; medo, ansiedade e terror agitam o fraco e o enfermo. A primeira entrada na vida dá angústia à criança recém-nascida e aos seus pais infelizes; fraqueza, impotência e aflição atendem a cada estágio dessa vida e, finalmente, ela acaba em agonia e horror.

A vida cotidiana do século XVIII na Escócia, terra natal de Hume, certamente foi inspiradora na descrição de Demea. Não é preciso citar fontes de pesquisa de modo muito preciso para afirmar que as dificuldades da vida enfrentadas pelos concidadãos do autor eram muitas, mesmo na Europa. A expectativa de vida média da população era inferior à metade da que se conhece hoje, o sistema público de saúde não existia, as condições de higiene eram precárias, proliferavam doenças cujo tratamento correto ou a cura não se conhecia e as instituições públicas de justiça e segurança ainda estavam dando os primeiros passos. Os poucos privilegiados que alcançavam uma idade mais avançada, não raro deveriam sofrer muito com as doenças próprias da velhice e não encontrar o necessário apoio para aliviar suas dores.

Um mundo assim não poderia ser caracterizado de modo diferente daquele descrito por Demea. Um lugar amaldiçoado e poluído, onde alguns poucos privilegiados conseguiam sobreviver, mas ainda assim submetidos a adversidades inacreditáveis, cujo fim era o horror.

O discurso religioso tinha um importante papel a desempenhar numa sociedade conturbada por tantos problemas. Se o sofrimento físico e a perturbação psíquica eram a regra, haveria de se esperar pelo alívio, pela esperança e pela calmaria em algum outro momento.

Mas a pergunta de Hume no Diálogo não é pela explicação de como esses males diários são superáveis, ou se haveria algum momento posterior à vida que pudesse, eventualmente, compensá-los. A questão para Hume era clássica, ela queria saber por que esses males cercavam e afligiam os homens do seu tempo se, como se dizia, um Deus poderoso e benevolente havia criado o mundo. Hume queria saber se havia coerência na afirmação dessa divindade e se seria possível justificar a sua verdade com a existência do mal no mundo.

O que se pretende ressaltar aqui não é o acerto ou desacerto das opiniões Hume sobre a religião natural. O ponto a ser debatido é a espécie de mal que os Diálogos examinam e a sua relação com o sujeito, o homem enquanto ente e conceito hoje.

O mal dos Diálogos está fora do sujeito. Ele está no mundo e cerca os homens e todas as coisas como se fosse uma segunda atmosfera. Uma névoa terrível que traz consequências desagradáveis desde o nascimento até a morte do sujeito. O mal é uma guerra suja entre as criaturas vivas que está à espreita das suas vítimas com dores físicas e psíquicas. Não há como evitar a sua presença, fracos e fortes são afetados com angústia e desespero. Cria-se um mundo às avessas: a vida é sofrimento, o nascimento de uma nova vida é motivo de infelicidade.

Esta névoa pestilenta, que lembra as piores descrições que se tem da Idade Média e dos miseráveis que cercavam as cidadelas, não encontra justificativa no sujeito, na sua constituição fundamental. Ela não foi criada por ele. Ele, o sujeito, é que fora jogado nesse ambiente hostil e, em princípio, não lhe será proporcionada a salvação.

Mas essa seria, certamente, a sua única esperança. Alguém poderá salvá-lo, afinal o mundo em que ele está abandonado não foi criado por Deus Todo-Poderoso, conhecido por sua benevolência? Supõe-se, portanto, que o contemporâneo de Hume alimentava alguma esperança de se sentir prestigiado e amado por aquele que, na sua fé, era o ente de maior bondade existente.

O sujeito também poderia, de outra forma, libertar-se da sua fé cega e avaliar de modo racional a sua situação. E aqui Hume se transfigura no Filo do Diálogo. O mal neste mundo, a dor, a angústia, a depressão, a violência, podem então ser evidências da ausência de Deus. E esta é uma explicação possível: o homem foi deixado num mundo que é essencialmente maléfico, que o tortura desde o nascimento até a morte e não lhe permite esperança concreta de alívio futuro. Um Deus poderoso e benevolente, criador do próprio homem, não faria isso, logo, sua afirmação só pode ser falsa. Esta não é a conclusão de Hume, mas poderia ter sido.

Modernamente esse mundo sem Deus não é mais uma explicação satisfatória. A complexidade social aumentou, as crenças religiosas e a ciência passaram por transformações. Mais do que isso, a noção de sujeito também mudou.

As incertezas e o sofrimento do homem atual não mais podem ser atribuídos a fatores que lhe são externos, mas ter sua justificação encontrada no próprio homem.

Freud e as suas teses do psiquismo dividido, no qual o Eu não tem mais a autonomia e a liberdade que se pensava, são, em parte, motivo para essa mudança. A subjetividade, o Eu, o Ego, noção absolutamente irredutível e fundamental até Hegel, não é o ponto de partida fundamental do pensamento enquanto liberdade. Ela, a subjetividade, não é livre, pois está ilhada internamente. Ela não é expressão de liberdade, pois há um ponto obscuro do psiquismo, totalmente fora de controle, que condiciona e interfere no seu modo de expressão. O inconsciente faz do sujeito, do Ego, uma ilha numa noite escura. Não se sabe o que vem pela frente, nem o que vem por baixo, mas há sempre uma expectativa de conturbação, de retorno de algo terrível.

A expressão do Ego, por isso, está contaminada pelos sintomas dessa segunda instância, o mar escuro e revolto se jogando contra o sujeito consciente. A linguagem do sujeito não é mais clara, ela precisa ser interpretada. Seus gestos involuntários e sua fala truncada, sua aparente incapacidade de fazer ou ser, são resultados do retorno involuntário de situações trancafiadas na noite escura do inconsciente psíquico.

Dessa insegurança subjetiva resulta a angústia, a fraqueza, a insegurança e a impotência relatadas por Demea. O sujeito que, modernamente, atende com maior facilidade suas necessidades vitais, trata de suas doenças, sofre muito menos fisicamente por causa delas, mas continua sob o efeito de um mal moral que não é muito diverso daquele do tempo de Demea.

É o caso de se reafirmar um mundo no qual Deus está ausente? Não, pois é o próprio sujeito que se descobre como fonte do mal.

O sujeito se vê, modernamente, prisioneiro do seu próprio mal. Se o mundo hoje é, de modo geral – descontados os cantos obscuros de violência e miséria de alguns continentes – mais amistoso ao homem, se as transformações por ele mesmo operadas tornaram a vida humana menos sofrida fisicamente e aumentaram a expectativa de sobrevivência significativamente, o sofrimento psíquico, que Freud localizou no interior do próprio homem, esse não foi extirpado.

A visão mágica do mundo, em que o homem é o ente dominado criado por um Deus benevolente e contraditório, que é perseguido por males do mundo, é substituída modernamente por outra, que racionalmente defende uma subjetividade ilhada pelo inconsciente irracional.

Com uma diferença sutil. Se para Demea o fim sempre é a agonia e o horror, o sujeito moderno tem esperança na psicanálise. A esperança sobre algo que transcende o mal aparente dos tempos Hume: o sujeito acredita que, pensando sobre o seu próprio pensamento, reconstruindo as suas memórias e vivências, ele consegue melhorar a sua própria estrutura. Afinal, a fonte do mal que lhe causa a dita dor moral ele conhece e é totalmente insuspeita: é ele próprio.