terça-feira, 22 de junho de 2010

Freud e a hipótese do inconsciente psíquico

Marco Antonio Schmitt


INTRODUÇÃO

Sigmund Freud nasceu em 1856, filho de uma família judaica, em Freiberg, cidade inserida no então Império Austro-Húngaro e hoje pertencente ao território da República Tcheca. Estudou Medicina em Viena, na Áustria, onde foi laureado em 1881 (GAY, 1989, p. 22).

Freud era médico, sendo que seus estudos iniciais dirigiam-se à anatomia do cérebro e, mais adiante, passou a se dedicar ao estudo de doenças nervosas. Não tinha formação filosófica e algumas vezes chegou mesmo a demonstrar ojeriza ao discurso filosófico (BIRMAN, 2003, p. 9).

Mas é com a Psicanálise que Freud começa seu distanciamento da Medicina e sua aproximação da Filosofia.

A Psicanálise é criação de Freud, resultado direto do seu trabalho clínico com seus pacientes que sofriam de histeria (LIMA, 2001, p. 22.). É o resultado de experiências no campo clínico, a partir do método científico.

Como ramo do saber a Psicanálise pode ser definida como um “método de investigação que consiste essencialmente em evidenciar o significado inconsciente das palavras, das ações, das produções imaginárias - sonhos, fantasias, delírios - de um sujeito” (LAPLANCHE e PONTALIS, 1998, p. 384).

O método psicanalítico de Freud não subsiste, portanto, sem a existência do inconsciente, um registro psíquico além da consciência.

Inconsciente é, também, uma noção tópica, no sentido de teoria dos “lugares”, do grego topoi. De acordo com essa noção, o aparelho psíquico é formado por sistemas com características diversas, dispostos numa ordem um em relação aos outros. Metaforicamente, esses sistemas podem ser considerados como “lugares”.

Freud construiu a sua primeira tópica do aparelho psíquico distinguindo três sistemas, o inconsciente, o pré-consciente e o consciente. Há uma segunda tópica do pensamento freudiano que sucede a primeira, na qual diferencia-se o Id, o Ego e o Super-ego. Há semelhanças e dessemelhanças com a primeira tópica, mas que não cabem ser analisadas no presente trabalho. O importante é não confundir ambas as noções.

O sistema consciente, nessa visão tópica, é o sistema de percepção-consciência, localizando-se na periferia do aparelho psíquico. Ele recebe as informações do exterior, captadas pelos sentidos, e do interior, as sensações de prazer e desprazer e as informações da memória.

O sistema inconsciente é constituído por conteúdos recalcados ou reprimidos aos quais foi recusado o acesso ao sistema pré-consciente. Os conteúdos ali encontrados, de modo geral, são representantes de pulsões, de instintos, desejos de infância. Estão inacessíveis à consciência por força de uma censura, que impede sua evocação.

O sistema pré-consciente está, topicamente, entre os dois sistemas anteriores. Do inconsciente ele está separado por uma censura que impede a passagem do conteúdo inconsciente para a pré-consciência. Entre ele e o consciente há uma segunda censura, porém, menos rigorosa. O conteúdo do pré-consciente é formado por conhecimentos e recordações não atualizadas, no sentido de não estarem conscientes a todo momento, mas que podem ser evocados quando necessário. Diferente do conteúdo inconsciente, o qual está confinado pela censura.

Os três sistemas, numa visão dinâmica, estão em conflito entre si. O inconsciente empreende um insistente movimento de retorno, para ter acesso à consciência e à ação, e o pré-consciente / consciente se opõe a isso mediante a repressão, o recalque.

Essa dinâmica do conflito ainda se manifesta por formações do inconsciente, por sintomas diversos, como sonhos, atos falhos e lapsos.

E a diferença fundamental entre inconsciente e pré-consciente estaria na vontade: seria possível tornar consciente imediatamente qualquer elemento do pré-consciente, mas não do inconsciente.

O tema do presente ensaio é a hipótese do inconsciente psíquico, tal como Freud a formulou no ensaio “O Inconsciente” (FREUD, 1969).

Tal hipótese, de acordo com Freud, é necessária e legítima para explicar as lacunas da consciência. É uma hipótese hermenêutica para sonhos, atos falhos e as doenças mentais.

1 O INCONSCIENTE PSÍQUICO COMO HIPÓTESE NECESSÁRIA

Primeiro Freud apresenta os argumentos para que a hipótese seja necessária (FREUD, 1969, p. 82 e OS FILÓSOFOS, 2003, p. 273).

Ela é necessária pelo chamado princípio da continuidade psíquica. Segundo esse princípio, apenas o próprio aparelho psíquico deve explicar as suas próprias manifestações.

O sistema consciente não explica a totalidade dessas manifestações, tais como, por exemplo, os chamados atos falhos e os sonhos, no caso de pessoas sadias. Não são explicados, também, sintomas ou obsessões em pessoas doentes. Não há explicação para determinadas conclusões alcançadas sem se saber como.

Todas essas situações ficam inexplicáveis se não for interpolada a hipótese do inconsciente psíquico, que é a sua garantia de sentido.

O sentido desses atos depende de uma hipótese diversa de uma simples causa orgânica. Se os sonhos fossem o efeito de fenômenos orgânicos ou se as doenças mentais tivessem tão somente causas orgânicas, a hipótese do inconsciente psíquico de Freud não seria necessária, e nem mesmo legítima (OS FILÓSOFOS, 2003, p. 273).

Como é explicável o fato de se querer dizer determinada palavra e dizer-se outra? Como é explicável o fato de se pretender escrever certa palavra e se escrever outra? Qual é a causa desses atos falhos, desses lapsos? Não seria esse o resultado da contraposição de duas intenções diversas, uma das quais de natureza inconsciente?

O inconsciente tem um valor explicativo, quando se assume a decisão de que o aparelho psíquico e seu funcionamento devem ser explicados por ele mesmo.

E aquelas situações não explicadas fazem com que a pretensão de explicar tudo o que ocorre no aparelho psíquico a partir do sistema consciente é insustentável, tal como Freud enuncia:

Quando, ademais, disso resultar que a suposição da existência de um inconsciente nos possibilita a construção de uma norma bem-sucedida, através da qual podemos exercer uma influência efetiva sobre o curso dos processos conscientes, esse sucesso nos terá fornecido uma prova indiscutível da existência daquilo que havíamos suposto. Assim sendo, devemos adotar a posição segundo a qual o fato de exigir que tudo quanto acontece na mente deve também ser conhecido pela consciência, significa fazer uma reivindicação insustentável (FREUD, 1969, p. 82).

Ela é necessária, igualmente, para explicar nossas lembranças latentes, ocultas. Freud insiste na necessidade do inconsciente psíquico afirmando, ainda, que o conteúdo do sistema consciente, num momento qualquer, é muito pequeno. Como o conteúdo do aparelho psíquico é muito maior, constituído de lembranças das mais diversas espécies, conclui que a maior parte desse conteúdo deve permanecer, por longos períodos, em estado de latência, oculto, no inconsciente.

A objeção feita a Freud, e à qual ele mesmo responde no ensaio, quanto às lembranças ocultas, é no sentido de que essas já não seriam mais parte do sistema psíquico. As lembranças ocultas seriam, em refutação à idéia freudiana de estados psíquicos, estados físicos, orgânicos.

Tal idéia, como Freud já havia enunciado antes, está fundamentada na dita pretensão insustentável de que tudo o que é psíquico é necessariamente consciente.

Por que ela é insustentável? Porque ela desloca a questão da pesquisa psicológica sem oferecer uma compensação segura para isso em qualquer outro campo do conhecimento. A Medicina, segundo Freud, não tem condições de apresentar uma explicação orgânica suficientemente segura para refutar a hipótese do inconsciente. Então, por que abandonar desde agora a pesquisa psicológica? Vale transcrever o trecho correspondente:

A isso podemos responder que a equivalência convencional entre o psíquico e o consciente é totalmente inadequada. Ela rompe as continuidades psíquicas, mergulha-nos nas dificuldades insolúveis do paralelismo psicofísico, está sujeita à censura de, sem um motivo óbvio, superestimar o papel desempenhado pela consciência, forçando-nos prematuramente a abandonar o campo da pesquisa psicológica sem ser capaz de nos oferecer qualquer compensação de outros campos (FREUD, 1969, p. 83).

2 O INCONSCIENTE PSÍQUICO COMO HIPÓTESE LEGÍTIMA

Por que seria legítimo, de acordo com Freud, supor-se a existência de um inconsciente? Por uma razão aparentemente simples: essa suposição decorreria do mais habitual e geralmente aceito modo de pensar.

O que faz a consciência com as pessoas? Ela as faz conscientes, ou conhecedoras de seus próprios estados mentais.

E em relação às outras pessoas, como se sabe que elas também têm consciência? Diz Freud, essa é uma mera dedução fundamentada por analogia, a partir da observação que se faz a respeito das declarações e das ações das outras pessoas.

E qual a razão dessa dedução? Ela faz com que a conduta alheia se torne inteligível. Ou seja, supõe-se que os outros sejam iguais a nós pois assim eles se tornam inteligíveis.

Nas palavras do próprio Freud, “sem qualquer reflexão especial atribuímos a todos os demais a nossa própria constituição, e portanto também a nossa consciência, e que essa identificação é uma condição sine qua non para a nossa compreensão” (FREUD, 1969, p. 85).

A Psicanálise, quando defende a hipótese do inconsciente, quer que se faça o mesmo em relação a si mesmo. Ela quer que se diga:

[...] todos os atos e manifestações que noto em mim mesmo, e que não sei como ligar ao resto de minha vida mental, devem ser julgados como se pertencessem a outrem; devem ser explicados por uma vida mental atribuída a essa outra pessoa” (FREUD, 1969, p. 85).

Constatando-se, assim, a existência de atos e manifestações que são atribuíveis a outrem, está-se admitindo a existência de uma segunda consciência, um segundo “eu”, incontrolável, dentro de um mesmo sujeito.

Freud nega e argumenta contra a existência de uma segunda consciência, dizendo que não se trata disso, mas do inconsciente em si mesmo.

O inconsciente, como hipótese legítima, poderia, segundo Freud, representar uma extensão das correções feitas por Kant sobre a nossa percepção externa. Kant afirmava que as percepções são subjetivamente condicionadas e que elas nunca alcançarão a coisa em si. Mas também não deixarão de perceber algo.

Assim também a Psicanálise estaria advertindo: a percepção da nossa consciência não alcança os processos mentais inconscientes de maneira genuína. Todavia, de alguma maneira os avalia, por hipótese. Nas palavras de Freud:

A suposição psicanalítica a respeito da atividade mental inconsciente nos aparece, por um lado, como uma nova expansão de animismo primitivo, que nos fez ver cópias de nossa própria consciência em tudo o que nos cerca, e, por outro, como uma extensão das correções efetuadas por Kant em nossos conceitos sobre percepção externa. Assim como Kant nos advertiu para não desprezarmos o fato de que as nossas percepções estão subjetivamente condicionadas, não devendo ser consideradas como idênticas ao que, embora incognoscível, é percebido, assim também a psicanálise nos adverte para não estabelecermos uma equivalência entre as percepções adquiridas por meio da consciência e os processos mentais inconscientes que constituem seu objeto. Assim como o físico, o psíquico, na realidade, não é necessariamente o que nos parece ser. Teremos satisfação em saber, contudo, que a correção da percepção interna não oferecerá dificuldades tão grandes como a correção da percepção externa — que os objetos internos são menos incognoscíveis do que o mundo externo (FREUD, 1969, p. 87).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A hipótese do inconsciente formulada por Freud é uma necessária e legítima.

Necessária por força do princípio da continuidade psíquica, pois apenas o próprio aparelho psíquico pode explicar as suas manifestações. Para dar sentido a atos falhos e sonhos, por exemplo, é necessário recorrer à hipótese do inconsciente psíquico, já que diante do sistema consciente tratam-se de lacunas. É necessária, também, para explicar as nossas lembranças latentes.

É legítima, porque ela decorre de uma inferência muito comum ao nosso modo de pensar, o qual atribui aos outros a nossa própria constituição como requisito de inteligibilidade própria. Se há atos e manifestações que verificamos em nós mesmos, mas não os reconhecemos como resultado da nossa atividade psíquica, então eles devem pertencer a outra pessoa. E essa segunda personalidade é o inconsciente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIRMAN, Joel. Freud e a Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. (Coleção Passo a Passo).

FREUD, Sigmund. Metapsicologia. Rio de Janeiro: Imago, 1969. Livro 11 (Pequena Coleção das Obras de Freud).

GAY, Peter. Freud – Uma vida para o nosso tempo (trad. Denise Bottmann). São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

LIMA, Luiz Tenório Oliveira. Freud. São Paulo: Publifolha, 2001. (Coleção Folha Explica).

OS FILÓSOFOS Através dos Textos – de Platão a Sartre, Por um grupo de professores. 2ª edição, São Paulo: Paulus, 2003.

REALE, Giovanni e ANTISERI, Dante. História da Filosofia. 4ª edição, São Paulo: Paulus, 1991. Volume 3.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Ética ambiental

 
Ética ambiental e a hipótese do “mundo sem ninguém”

Marco Antonio Schmitt

Os efeitos nocivos das atividades humanas sobre o ambiente natural do planeta são amplamente conhecidos. As campanhas de grande dimensão em favor de um maior cuidado com o ambiente, no sentido de que é preciso, urgentemente, adotar ações humanas menos destrutivas e de maior respeito com a natureza, realçam e debatem tais efeitos nos mais diferentes níveis de discussão.

Da produção legislativa é exigida uma maior intervenção nas atividades humanas para proteger o ambiente. Nas práticas diárias, recomenda-se o consumo de produtos cuja origem respeite o ambiente e incentiva-se a separação de resíduos domésticos em orgânicos e não orgânicos. As atividades industriais e comerciais devem atender a programas de controle ambiental fiscalizados pelo Estado e pela sociedade e sua autorização para operar depende do cumprimento de uma série de obrigações, todas visando a proteção ambiental.

As situações assim descritas soam hoje como óbvias ou evidentemente necessárias, mas elas são representativas de uma época muito recente. Foi no recém-terminado século XX que a questão ambiental foi consolidada, ao custo de vários acidentes e degradações de toda ordem, que destruíram grandes espaços naturais e comprometeram a saúde das pessoas. Mais do que isso, foram situações de risco que, pela primeira vez na história, derrubaram a convicção generalizada de que os recursos naturais do planeta são inesgotáveis e de que o ambiente tem uma ilimitada capacidade de regeneração.

Os acidentes que resultaram no derramamento de óleo em mares e praias, que destruíram lugares destinados ao lazer e, ao mesmo tempo, à sobrevivência de comunidades dependentes da pesca. Afetaram a saúde das pessoas que se alimentaram de produtos contaminados pelos acidentes. Destruíram o local de reprodução de espécies animais, que foram obrigadas a migrar ou simplesmente desapareceram.

Além da ocorrência de acidentes, a prática de extração de recursos naturais sem o parâmetro da sustentabilidade, isto é, sem considerar o comprometimento do mesmo recurso para gerações futuras, também hoje é condenável.

Como se interpreta essa mudança de orientação operada durante o século XX? Em síntese, a submissão do meio natural ao desenvolvimento das atividades humanas, de forma predatória e destrutiva, não mais se justificava por si, mas apenas se respeitada a qualidade de vida ambiental.

Dito de outro modo, o desenvolvimento, enquanto valor ou ideologia, não se sustentava mais se ele não proporcionava qualidade de vida de modo amplo, incluindo neste conceito a qualidade do ar, da água, do solo e de todos os componentes naturais que contribuem para uma vida humana saudável.

Estava-se diante de um dilema. A atividade humana de transformação da natureza para o desenvolvimento, cujo objetivo era proporcionar bem-estar, gerava efeitos colaterais que ameaçavam o bem-estar. O que fazer para que esses ditos efeitos colaterais, advindos da degradação dos recursos naturais, não viessem a anular as melhorias de bem-estar geradas com o desenvolvimento?

Para responder a perguntas como essa que surgiram teorias éticas com a temática ambiental.

De um lado, formaram-se teorias antropocêntricas que defendem limites de intervenção humana no ambiente, conservando ou preservando recursos materiais. A ética de conservação dos recursos naturais defende a necessidade de se limitar o uso dos mesmos de modo que as gerações futuras também possam continuar a exploração. Já a ética de preservação quer proteger os recursos da exploração de modo que estes possam continuar contribuindo para o desenvolvimento espiritual do ser humano, e não apenas material e imediato.

Por outro, formaram-se teorias biocêntricas, que defendem uma relação diferente entre homem e natureza. Enquanto nas éticas da conservação e preservação o homem assume uma responsabilidade para com a natureza, o biocentrismo defende uma ética que se assenta sobre deveres diretos do homem perante a natureza.

No caso do biocentrismo mitigado, T. Regan parte da noção de sujeito de vida, seres vivos que possuem um ponto de vista sobre a sua própria vida, isto é, que têm uma identidade psicofísica, têm capacidade de desejos e atuam com objetivos. Todos esses sujeitos de vida, que incluem mamíferos de até um ano de vida, merecem consideração moral (JUNGES, 2004, p. 24). Não podem, portanto, ser tratados como meros objetos das nossas necessidades vitais.

Peter Singer também apresenta o seu modelo, no qual, todo ser que é capaz de experimentar sofrimento é digno de consideração moral, ou seja, é imoral infligir dor àqueles seres vivos que sentem dor (JUNGES, 2004, p. 25).

Já os modelos biocentristas globais são ainda mais radicais e fortemente antiantropocêntricos. Albert Schweitzer, por exemplo, propõe uma ética do respeito à vida que foi sintetizada numa frase: “Eu sou a vida que quer viver em meio à vida que quer viver” (JUNGES, 2004, p. 29). Ou seja, tudo o que tem vida é moralmente respeitável e o homem deve pautar as suas ações por essa máxima. O caráter sagrado da vida se sobrepõe a todos os demais valores do homem.

Há também outro modelo biocentrista conhecido como ética da terra, proposto pelo americano Aldo Leopold, ainda em 1949. Segundo Leopold, uma atitude moralmente adequada, em se falando de ética ambiental, é aquela que tende a preservar a integridade, a estabilidade e a beleza de uma comunidade natural, da qual o próprio homem faz parte (JUNGES, 2004, p. 32). Todas as formas de vida conhecidas formam junto com o homem um grande sistema, uma comunidade biótica, e que o homem deve despertar seus sentimentos de amor e respeito em relação a esse conjunto, para que ele se mantenha íntegro e harmonioso.

Um último modelo que merece referência é o da ética bioempática de J. B. Callicott, que defende uma convivência do homem com a comunidade biótica, tal como já ocorre com a família, a sociedade e a nação, formando uma grande aliança contra o perigo de aniquilação do nosso planeta (JUNGES, 2004, p. 35). E nesta aliança o ser humano é incluído na comunidade biótica de modo paritário com os demais seres vivos.

Os modelos de ética ambiental biocêntricos são cativantes e têm boa repercussão no meio intelectual, pois representam o que há de mais inovador nessa matéria. A atribuição de deveres ao homem, cujos correspondentes direitos são titularizados pelo ambiente enquanto entidade simbolicamente personalizada, requer uma série de adaptações no modo de pensar as instituições e as regras de conduta. Como, por exemplo, haveria de ser feita a assimilação do direito dos animais, sendo estes apenas objetos de direito, e não sujeitos de direito?

A ética do biocentrismo se contrapõe à chamada ética do desenvolvimento. O crescimento estimulado desde a Bíblia, do “crescei e multiplicai-vos, dominai a natureza”, não é mais unanimidade. O que a ética ambiental orientada biocentricamente propõe é que a dominação do meio natural deve ser substituída por uma atitude integradora. O homem é parte na natureza, da biota, depende dela e deve se integrar a esse sistema. Não deve destruí-la, mas respeitá-la como todo ser vivo merece ser respeitado. A regra de ouro da ética de reciprocidade – não faz aos outros o que não queres que eles façam a ti mesmo – passa a ser aplicável na relação do homem com o ambiente e não apenas entre os homens.

Essa ética do respeito mútuo, entre homem e ambiente, é uma pauta de conduta muito positiva e que, certamente, se colocada em prática na vida real, levaria a resultados desejáveis.

Entretanto, haveria espaço nessa ética para a hipótese do mundo sem ninguém?

Em outras palavras, seria razoável adotar uma posição ética de tipo biocêntrica que defendesse a intocabilidade de áreas ainda em seu estado natural, ou que estivessem muito próximas do que eram antes do surgimento do homem?

A hipótese do mundo sem ninguém foi descrita por Alan Weisman, na obra "O mundo sem nós" e transformada em série de televisão em anos recentes (Life after People, série de televisão produzida pelo History Channel; no Brasil, recebeu o título de “O Mundo sem Ninguém”). Tanto o livro quanto a série televisiva descrevem o que aconteceria no mundo após o desaparecimento de todos os seres humanos. As pessoas desapareceriam não por efeito de um desastre nuclear ou natural, nem de modo paulatino. O fim se daria para os humanos de modo rápido e instantâneo, por uma causa desconhecida.

A grande questão suscitada pela hipótese é: o que aconteceria com as cidades, casas, usinas de energia, pontes, enfim, todas as construções e objetos culturais deixados pelo homem? Quanto tempo esses bens subsistiriam sem a presença humana, sem a sua constante manutenção por parte dos seres humanos?

Pode parecer surpreendente, mas os traços da cultura humana sem a nossa presença não durariam muito tempo, de acordo com o estudo de Weisman. As cidades seriam retomadas por plantas e animais. As estradas, em questão de anos, desapareceriam sob a vegetação rasteira. Animais domésticos como cães e gatos, por falta de amparo dos antigos donos, em parte morreriam ou se tornariam selvagens. Com o esgotamento das fontes de energia elétrica, o bombeamento de águas cessaria e muitas cidades seriam alagadas e, neste caso, os pântanos retomariam o espaço perdido. Após uma centena de anos, poucas paredes de alvenaria ainda estariam de pé. Rios e florestas teriam, finalmente, condições para se regenerar.

Este mundo natural recomposto e com cheiro de vida é uma referência ideal absolutamente desejável. Mas não um referencial ético.

A ética do biocentrismo assume posições que considera o mundo sem ninguém uma necessidade. Quando se defende em fóruns mundiais a manutenção das grandes florestas tropicais e toda a sua biodiversidade, as ações propostas muitas vezes vão ao encontro dessa premissa, sugerindo que tais áreas sejam isoladas da ação humana. Isolando-as, sua condição seria preservada para as gerações futuras e isso seria positivo para todo o planeta.

Entretanto, a premissa assumida, de que áreas naturais isoladas e intocadas são mais benéficas do que se forem adequadamente exploradas, é falsa, porque pressupõe um mundo sem ninguém.

O mundo real é habitado por bilhões de seres humanos. A posição dominante da humanidade em relação aos outros seres vivos se justifica, entre outras condições que a diferenciam, pelo fato de serem os únicos seres a agirem de acordo com padrões de conduta de grande complexidade, inclusive orientados eticamente. As necessidades vitais dessa enorme população são muitas e, de acordo com o padrão comportamental assumido, podem tornar insuficientes os recursos naturais existentes.

As dificuldades para se atender a todas as necessidades vitais geram conflitos de várias ordens. Conflitos armados por disputa de território, fome e desnutrição de milhares de pessoas, conflitos agrários que denotam a desigual distribuição das terras férteis e mesmo a necessidade constante de se ampliá-las para fins de colheita, disputas no acesso à água potável, controle sanitário insuficiente e o consequente sofrimento das populações com doenças e até mesmo a deficiente educação básica proporcionada regionalmente. Estes são problemas a enfrentar num mundo com bilhões de pessoas, e não num mundo sem ninguém.

Antes de se pensar em investir recursos na proteção do ambiente contra os seres humanos, criando barreiras físicas e éticas, é preciso pensar na solução de problemas dos seres humanos, aqueles que causam o sofrimento diário de milhares deles. A criação de barreiras na movimentação das populações, com a defesa de éticas biocêntricas extremas, que atribuem deveres a pessoas pressionadas pela fome, violência e o esquecimento, não é razoável.

É preciso ter em mente que a ética desenvolvimentista de submissão sem limites dos recursos naturais deve, evidentemente, ser superada. Ela não encontra mais justificativa hoje num mundo que se conhece como limitado, com recursos que não são inesgotáveis. Mas esses recursos, que são as grandes riquezas com que o ambiente nos provê, devem servir para o máximo bem-estar que se pode proporcionar a todos os seres humanos, de modo equilibrado e sustentável.

O homem não pode abrir mão desse bem-estar. Impedir o acesso de populações carentes às riquezas naturais em nome de supostos direitos dos animais, ou deveres para com o caráter sagrado do ambiente, terá consequências desastrosas. Uma ética ambiental pautada rigorosamente pelo biocentrismo extremado, que tenha um “mundo sem ninguém” como algo desejável e positivo, somente se efetiva ao custo de mais destruição – desta vez, da população pobre e desamparada que vaga pelo mundo em busca de comida e proteção social.

Nesse sentido, reafirma-se: a ética ambiental não pode se orientar para um mundo sem ninguém.

Bibliografia consultada:

JUNGES, José Roque. Ética ambiental. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2004.
SAGOFF, Mark. Price, Principle and the Environment. New York: Cambridge University Press, 2004.
WEISMAN, Alan. O mundo sem nós. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007.

terça-feira, 8 de junho de 2010

A Psicanálise na Escola de Frankfurt

08-06-2010

Na semana passada terminei este trabalho para uma disciplina de História da Filosofia Contemporânea na PUC-RS.

Foi a primeira vez que escrevi algo sobre o pensamento de Freud relacionado com a Filosofia e, neste caso, sobre os ensaios dos integrantes da Escola de Frankfurt e as suas tentativas de aproximar o pensamento de Marx com a Psicanálise.

Deixarei este texto como a postagem inaugural do blog, o qual é um espaço que gostaria de dividir especialmente com a minha amada CLAUDIA ANDROVANDI e suas reflexões sobre Freud, e com todos os interessados em debater temas da Filosofia Contemporânea e da Psicanálise, não necessariamente vinculando ambos os conhecimentos.

Teoria Crítica e Psicanálise
Marco Antonio Schmitt

Introdução

A Psicanálise e a Teoria Crítica do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, ou da Escola de Frankfurt, desde sempre tiveram uma relação muito próxima. Tal proximidade pode ser descrita de vários modos, desde sob o aspecto temático da pesquisa feita pelo Instituto no qual os temas psicanalíticos – entendidos essencialmente como o pensamento freudiano – sempre estiveram em destaque, como pelo relacionamento muito próximo dos membros da Escola com os psicanalistas da época.
O principal objetivo dos frankfurteanos, como Adorno e Horkheimer, era integrar o pensamento de Freud ao de Hegel, Marx e Weber. E Freud, neste contexto específico, foi sempre levado para fazer companhia a Marx. A proposta dos idealizadores do instituto era a de um programa interdisciplinar e a Psicanálise tinha seu espaço reservado também por essa característica. O Instituto de Pesquisa Social foi, certamente, a primeira instituição a levar a sério o freudismo em pesquisas teóricas.
Qual era o objetivo dos teóricos com a obra de Freud? Numa interpretação possível, a Psicanálise era considerada uma disciplina fundamental para complementar ou corrigir a teoria marxista no que diz respeito à redução que esta fazia do reino psicológico a fatores socioeconômicos.
Outra explicação possível era a tentativa de integrar um importante movimento cultural com uma política de esquerda, apesar da Psicanálise receber designações pouco amistosas da esquerda em geral, como a de um produto da burguesia europeia decadente. Atribui-se tal integração cultural à posição desempenhada por Adorno. Mesmo sendo Freud um representante do conservadorismo europeu no final do século XIX, era inegável o valor da Psicanálise para a vanguarda cultural ao tempo da formação do Instituto de Pesquisa Social.
Também é possível dizer que o pensamento psicanalítico fora absorvido pelos representantes da Escola de Frankfurt como uma forma de fugir da ortodoxia do marxismo tradicional. Mais diretamente ainda, se esta última justificação não era suficientemente verificável, o interesse pessoal de um dos principais representantes do Instituto de Pesquisa Social, Horkheimer, por Freud já se manifestava na década de 20.
Havia também uma curiosa intimidade dos membros do Instituto com os psicanalistas europeus da época. O Instituto Psicanalítico de Frankfurt, inaugurado em 1929, dividia o mesmo edifício e as mesmas salas de aula do Instituto de Pesquisa Social. A própria fundação desse Instituto em Frankfurt deve-se inicialmente a Horkheimer, paciente do psiquiatra Karl Landauer, que havia sido aluno de Freud, com quem se tratava por conta de uma dificuldade de expor sem ter um texto previamente preparado. Horkheimer incentivou Landauer a formar o Instituto e veio a integrar a própria direção do mesmo. E, posteriormente, o próprio Freud veio a agradecer diretamente a Horkheimer o incentivo por meio de cartas.
Entre os nomes mais destacados nas investigações sobre Freud e sua integração com Marx está Erich Fromm, psicanalista e membro de ambos os institutos. Suas obras mais citadas são “O Conceito de Homem em Marx” e “Meu encontro com Marx e Freud”. Fromm também foi o responsável por disseminar e ensinar os conceitos psicanalíticos entre os membros do Instituto de Pesquisa Social.
Horkheimer e Adorno, também na sua obra mais conhecida, “Dialética do Esclarecimento”, utilizam-se da Psicanálise para explicar o desenvolvimento individual e coletivo, comentando as viagens de Ulisses.
E o quarto integrante de destaque na utilização das teses de Freud é Herbert Marcuse, especialmente em duas obras, “Eros e Civilização” e “Ideologia da sociedade industrial – o homem unidimensional”.
Cada um em sua obra adotou e adaptou parcialmente o pensamento de Marx e Freud ao seu modo, ora relativizando as teses freudianas com marxismo, ora impugnando o marxismo com a Psicanálise.
I – Os freudo-marxistas da fase alemã do Instituto de Pesquisa Social – 1923-33 – Erich Fromm

A integração da Psicanálise com o pensamento marxista era vista com simpatia nos ambientes de esquerda do início do século XX, ainda antes da fundação do Instituto de Pesquisa Social em 1923, ou mesmo fora dos seus estritos círculos.
Na primeira fase da Revolução Russa, de 1918, havia uma grande simpatia pela Psicanálise e pelas ideias de Freud na União Soviética. Suas obras foram traduzidas e consultórios psicanalíticos foram inaugurados em Moscou. Porém, com a morte de Lenin essas experiências culturais cessaram, Freud foi transformado em tabu, qualificado como um representante da burguesia decadente combatida pelos revolucionários e Pavlov tomou o seu lugar. A esquerda de modo geral passou a adotar posição refratária também e a aproximação freudo-marxista cessou. Wilhelm Reich foi um dos autores mais originais nesse tema no período entreguerras e sofreu duplamente os efeitos da mudança de posicionamento: foi ridicularizado, expulso do partido comunista e do movimento psicanalítico.
A principal objeção feita pelos ortodoxos esquerdistas era quanto ao pessimismo de Freud em relação às possibilidades de mudança social, completamente incompatível com as pretensões revolucionárias marxistas. Se para Marx o passado está prenhe do futuro e a classe operária é a parteira, para Freud o futuro está prenhe do passado e somente um médico ou a sorte pode nos salvar. A revolução não salvaria, pois seria apenas uma repetição da rebelião prototípica contra o pai, e estaria condenada ao fracasso e a sucessivas repetições do mesmo evento.
Essa reorientação foi exportada para a III Internacional Socialista e a Psicanálise passou a sofrer reiterados ataques por parte de publicações a ela vinculadas. Alguns ataques referiam, por exemplo, que ela era uma “charlatanice”, uma fantasia, produto de uma pequena burguesia decadente e preocupada exclusivamente com a sexualidade.
Os marxistas alemães ignoraram as críticas e continuaram se utilizando das teses freudianas. Por isso, na Alemanha dos anos 20 e 30 o conteúdo freudo-marxista continuou sendo difundido e utilizado numa tentativa de esclarecer a distância que havia entre a consciência política e as condições objetivas. A intenção era reificar e naturalizar a Psicanálise até as últimas consequências. Siegfried Bernfeld e Otto Fenichel são dois expoentes dessas ideias.
Mas qual era, afinal, a finalidade dos estudos freudo-marxistas?
Dois importantes fatos históricos foram o pano de fundo para as tentativas de juntar Freud com Marx – a revolução bolchevista e a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha.
Tentava-se com a Psicanálise entender a ação irracional da classe operária, que elegeu Hindenburg Presidente da Alemanha e mais tarde votou em Hitler. O marxismo mostrava-se insuficiente para explicar tais situações.
A compreensão do enigma parecia estar na Psicanálise, esta tida como uma doutrina do funcionamento psíquico da ação irracional. A ideologia, que movia as classes no sentido dessa ação irracional, poderia estar tirando sua persuasão de mecanismos afetivos, não submetidos ao crivo da racionalidade. As categorias psicanalíticas poderiam contribuir, segundo tais teorias, a explicar como a ideologia estava se movimentando.
A pergunta a ser respondida era a seguinte: como é possível que a maioria oprimida aceite sua opressão pela minoria? Era o problema do complexo de Hindemburg – a aceitação voluntária da opressão, expressão atribuída a Alexander (ROUANET, 1989, p. 21).
Para Bernfeld e Fenichel, a ação contrária aos interesses da classe a que pertenciam era causada pela ideologia burguesa, descontados aí fatores como a educação deficitária e a opressão material.
Outra observação que faz da Psicanálise um ponto de referência importante junto com as ideias marxistas é a explicação do comportamento da classe operária em relação à autoridade. A explicação estaria num infantilismo psíquico que leva a uma espécie de respeito cego pela autoridade. Segundo Rouanet, o respeito infantil por pessoas biograficamente importantes é extrapolado para entidades socialmente poderosas. Essa transferência é inconsciente e como tal só pode ser resolvida pela Psicanálise (ROUANET, 1989, p. 22).
Também se investiga o modo como a ideologia é interiorizada pelo indivíduo. Ela se enraíza no curso do processo de socialização, através das sucessivas privações pulsionais que a instância familiar e, posteriormente, outras instâncias vão impondo ao indivíduo. O processo pelo qual os diferentes objetos do amor vão sendo abandonados, no curso do desenvolvimento psicossexual, em que o indivíduo transita da fase oral para a genital, é acompanhado, em cada caso, de prescrições e proscrições, de normas que correspondem a valores sociais em vigor.
O momento estratégico dessa evolução é alcançado quando surge na fase fálica, o conflito edipiano. Sua dissolução supõe, por um lado, a renúncia à mãe como objeto do amor, e por outro, a identificação com o pai.
Com a incorporação do pai, incorpora-se, ao mesmo tempo, o sistema de valores que o pai encarnava. Constitui-se o superego. A partir desse momento, a autoridade se internaliza. A força externa se torna desnecessária. Como os valores do pai são os valores da ordem social, deixa de haver contradição entre os objetivos do sistema de poder e os impulsos do indivíduo. A ideologia se torna intrapsíquica. Está concluído o longo processo de penetração da ideologia nas consciências individuais. (ROUANET, 1989, p. 23).
Estas são observações de autores que não integraram a Escola de Frankfurt, mas que preparam o ideário freudo-marxista que os defensores da Teoria Crítica iriam incorporar. O Instituto de Pesquisa Social surpreendeu a esquerda em seu tempo quando retomou as ideias de Freud, rechaçadas pela Internacional Comunista.
Erich Fromm é o principal expoente da reconciliação de Marx e Freud nos anos 20 e 30.
Fromm se utiliza das teses freudianas para analisar a ideologia. Para isso, afirma que o aparelho pulsional não tem apenas um caráter biológico, mas ele se forma também por influências externas. Ele é suscetível a influências do exterior, das condições econômicas.
Mas as condições psíquicas internas do indivíduo também são elementos que modelam a sua ideologia. Marx e Engels, segundo Fromm, tinham essa noção que relacionava a ideologia às condições econômicas externas, mas não dispunham de uma psicologia científica para explicar como isso ocorria. A Psicanálise deveria preencher essa lacuna.
E aqui se tem uma primeira observação que relaciona Marx e seu ideário a Freud. A Psicanálise é apontada como um importante instrumento para explicar o comportamento dito irracional - compreender as ideologias como produtos de interação entre um aparelho pulsional e as condições socioeconômicas (ROUANET, 1989, p. 51).
O freudo-marxismo faz uma ligação necessária entre a história do indivíduo e o contexto social em que está inserido. Defende uma determinação histórica do caráter do indivíduo ou de uma classe. Fromm chama isso de caráter social, a soma dos traços comuns de um grupo de indivíduos inseridos numa mesma situação social, numa mesma condição de classe.
O caráter social é um intermediário, pois ele está entre a estrutura socioeconômica e as ideias predominantes de uma sociedade. Os três níveis estão em constante relação de condicionamento: o caráter social está sob o influxo da estrutura socioeconômica e condiciona as ideias predominantes. Estas, influenciam o caráter social e, indiretamente, acabam afetando a estrutura socioeconômica (FROMM, 1975, p. 85).
O nacional-socialismo da época é o tema mais recorrente de análise dos freudo-marxistas. Segundo Fromm, as condições da época condicionavam um caráter social sadomasoquista, a base pulsional da personalidade autoritária.
É preciso sofrer e fazer sofrer, oprimir e ser oprimido, obedecer à autoridade e exercer a autoridade. Nessas relações que a personalidade sadomasoquista consegue se realizar libidinalmente.
Mas como fica a questão do ódio desenvolvido contra o agressor? Ele não pode ser exteriorizado, já que há uma relação de admiração com quem está agredindo, com quem está satisfazendo desejos de opressão. Nesse caso, o ódio é reprimido e canalizado para outra direção, para os mais fracos. Há um desprezo pela fraqueza humana, contraponto da admiração pela força.
Para o sadomasoquista agir significa viver a história como se ela fosse um destino. Sempre se deve obedecer aos superiores. Submeter-se ao destino é heroico para o sadomasoquista, segundo Fromm.
A autoridade messiânica, o Fuehrer, precisa ser explicada em termos psicanalíticos. Ele tem um carisma sui generis que não pode ser imitado, pois há uma distância entre ele e o governado. Não é possível haver uma identificação com o Fuehrer, como acontecia com as autoridades do capitalismo clássico – este era o seu pressuposto de aceitação como líder e disso se deduzia uma possibilidade de ascensão social. Contudo, não há a menor possibilidade de identificação, tal a característica diferenciada do líder. O melhor que o indivíduo pode fazer é participar, substitutivamente, da grandeza do regime que o Fuehrer representa, numa espécie de substituição narcisística. Nas palavras de Fromm (apud ROUANET, 1989, p. 58):

Essa gratificação substitutiva narcisística, obtida pela submissão masoquista a um Poder mais alto, não é alcançada apenas na relação com o líder, mas no fato de participar do brilho da Nação ou da Raça. Quanto mais o indivíduo valoriza a força e a grandeza do Poder do qual participa, maior sua gratificação.

O caráter social defendido por Fromm também tem sua explicação em termos psicanalíticos. Trata-se aqui de analisar as chamadas mediações sociopsicológicas.
Segundo Fromm, as estruturas psíquicas duráveis do indivíduo são criadas a partir da socialização familiar. São mediatizadas pela autoridade do pai.
Essas estruturas, por força da sua origem (familiar), representam os valores da ideologia instaurada.
O indivíduo, munido desse instrumental, irá querer o que é socialmente desejado e não irá querer o que socialmente não é desejado. Ele abster-se-á do que é socialmente reprimido.
O superego, que controla as ações individuais, não é suficiente. É preciso uma autoridade externa que o ajude. O mesmo superego dará as condições para que essa autoridade seja eficaz. Em alguns casos, o indivíduo chega a fantasiar que essa autoridade externa é o próprio superego ou a autoridade paterna, com as mesmas características. A autoridade é o pai, é ele quem dá os limites.
Mas há uma relação dialética entre as autoridades interna e externa. O indivíduo projeta, ou fantasia, que a autoridade externa tem as mesmas características que o superego e atribui-lhe os mesmos poderes. Novamente, essa autoridade externa assim fantasiada é introjetada e reforça o superego. Há uma alimentação contínua e recíproca entre as autoridades, baseada em fantasia ou projeção (ROUANET, 1989, pp. 59 e 60).
Fromm tenta historicizar as categorias freudianas. E aqui está o encontro entre Marx e Freud. O autor critica Freud por este não ter percebido que o processo de alimentação recíproca do superego e da autoridade externa serve para a manutenção da sociedade de classes. Ele não constituiria um pressuposto da cultura em geral, mas a condição inafastável para assegurar o poder da maioria sobre a minoria.
É neste ponto que Fromm relativiza o mecanismo pulsional. Primeiro, em sociedades mais desenvolvidas, o recalque necessário é proporcionalmente menor; segundo, as classes oprimidas são forçadas a um sacrifício pulsional mais importante. É possível prever, portanto, uma situação social em que o recalque se torne desnecessário.
Voltando ao caráter social, este se completa com a política cultural. A família, como instância psíquica da sociedade, é responsável pela produção das estruturas individuais idênticas, pela chamada socialização. Esta é uma primeira instância.
Depois da família, os aparelhos culturais – escola, as mídias de massa e outras instituições da sociedade civil – serão os complementos da entidade familiar, para reforçar aquilo que a família gerou. Em outras palavras, a família gera o caráter social, o qual se identifica com uma ideologia ossificada, a qual dá o suporte para que sejam recepcionadas as ideologias de outros aparelhos, que vão consolidar o mesmo caráter.
O que Fromm visava não era, todavia, unir ou fundir os pensamentos de Marx e Freud em síntese, mas refletir sobre ambos. Em sua obra de 1962 ficou registrado que suas últimas tentativas foram muito mais direcionadas para Marx, na busca de enfoques psicológicos antecipados por este em seus trabalhos, que diretamente para Freud. Também afirmou que o significado histórico da obra de Marx não era sequer comparável à de Freud.
Fromm também tenta delinear uma noção de Psicologia Social. Afirma que é um erro supor que as noções da Psicologia seriam aplicáveis apenas ao indivíduo, pois os indivíduos nunca estavam totalmente isolados do meio social. Essa Psicologia Social teria como tarefa compreender as condutas motivadas de modo inconsciente em termos de efeitos da subestrutura socioeconômica sobre os impulsos psíquicos básicos.
Ou ainda, à Psicologia Social cabe investigar a maneira como a estrutura libidinal – tida como combinação de impulsos humanos básicos e fatores sociais – atua como fator de coesão social e afeta a autoridade política.
Todavia, Fromm foi aos poucos perdendo seu entusiasmo por Freud e se afastando de alguns de seus postulados, o que transformou o seu pensamento, tornando-o um revisionista. Em 1935 publica um artigo no qual relata esse inconformismo. Considerava que Freud era um prisioneiro de seus valores conservadores e que a sua ênfase nas experiências da infância na análise eram, em verdade, uma forma de desviar a atenção da análise da pessoa propriamente dita. Distanciou-se, com isso, dos próprios membros do Instituto de Pesquisa Social e se afastou em 1939, passando a clinicar.
O Instituto de Pesquisa Social teve que encerrar suas atividades em 1933 com a chegada dos nazistas ao poder. Transferiu sua sede inicialmente para Genebra e depois para Nova Iorque. O retorno de Horkheimer e Adorno para Frankfurt com o Instituto ocorreu somente em 1949.
Em 1947, Horkheimer e Adorno escrevem uma das obras mais importantes da Teoria Crítica, que é a “Dialética do Esclarecimento”. A obra é amplamente permeada pelas teses psicanalíticas e é expressiva do novo período da Escola de Frankfurt após o final da Segunda Guerra.

II – Marx e Freud na Dialética do Esclarecimento – 1947 – Horkheimer, Adorno e Marcuse.

Adorno e Horkheimer voltaram-se para a Psicanálise com a finalidade de encontrar nela uma alternativa à racionalidade do pensamento, que até aquele momento, havia produzido o caos europeu sintetizado na Segunda Guerra.
Era preciso formular uma teoria não-racional, para não dizer irracional, que se contrapusesse à racionalidade doentia que se criou e pudesse adentrar naquilo que estava por trás desta, de modo a alcançar a “pré-história” do sujeito e da razão. Em termos históricos, isso significava pesquisar sobre os subterrâneos da Europa, verificar o que havia acontecido com os instintos e paixões humanas distorcidas pela civilização.
“Dialética do Esclarecimento” utiliza-se da viagem de Ulisses, da Odisseia,  para dar uma versão psicanalítica do desenvolvimento humano individual e coletivo.
Nela os autores investigam o motivo pelo qual a racionalidade das relações sociais, ao invés de ter produzido uma sociedade de indivíduos livres, produziu uma sociedade marcada pela ausência de emancipação e transformou os indivíduos em meras peças de uma engrenagem de um mecanismo que não compreendem e não dominam, mas ao qual se submetem e se adaptam. Era preciso compreender como a razão humana se restringiu a uma função instrumental, cuja forma social concreta é a do mundo administrado.
A jornada de Ulisses é representativa do processo de emancipação do ego. Para manter o ego unificado e íntegro, o sujeito deve manter-se no seu curso original de autopreservação. Precisa reprimir a vida inconsciente-instintiva, o que significa fazer renúncias sucessivas em relação aos prazeres do mundo arcaico.
A cada renúncia efetivada, a consolidação do Eu, do Ego, é mais forte, maior.
Ao se fortificar, esse Ego se consolida e se torna mais racional, supera a vida instintiva que não permite a sua diferenciação.
Fortalece-se o lado racional e o sujeito também adquire capacidade estratégica, passando a manipular o mundo externo. A natureza é reificada, isto é, torna-se objeto da sua dominação técnica, e o sujeito se diferencia dela.
Este é o caminho que Horkheimer e Adorno consideram único para a formação do ego autocrático. A unidade e identidade desse ego, conquistada a partir de sucessivos sacrifícios da vida pulsional, tem sua manutenção condicionada ao longo de todos estágios de desenvolvimento a uma vigilância constante: o sujeito precisa estar atento sempre contra as incursões da natureza interior e exterior.
Há algo de frustrante nessa emancipação do esclarecimento.
O projeto de Adorno e Horkheimer restringem a função do ego à sua autopreservação e, assim, ele assume um caráter autodestrutivo. O sacrifício da vida interior é, em verdade, um obstáculo para a liberdade e para a realização do se poderia chamar vida completa, ou a busca de uma satisfação integral.
A vida instintiva é importante para a criatividade e um sentimento de “vida que vale a pena ser vivida”, segundo Winnicott. Os autores, porém, acreditavam que mesmo assim, mesmo com o sacrifício da vida pulsional, a formação do sujeito tal como haviam proposto era um avanço em termos de autonomia.
Essa autonomia do sujeito, ainda, precisava ser justificada em termos políticos. Um indivíduo autônomo, capaz de um juízo político independente, mesmo que não totalmente, era importante num contexto histórico que havia conhecido o fascismo e o nazismo tão recentemente. Era importante salientar que o sujeito autocrático, que sacrifica sua natureza interior em nome da racionalidade, seria capaz de, ao menos, manter um olhar crítico diante do preconceito, dos dogmas e de certas formas de estreiteza mental.
Foram os aspectos biológicos das teorias de Freud que inspiraram a dialética do esclarecimento nessa exposição para entender o sujeito emancipado e autônomo. Adorno e Horkheimer justificavam a posição dizendo que os instintos, a vida pulsional, eram totalmente incompatíveis com as forças integrativas da sociedade.
Depois da dialética do esclarecimento vem Herbert Marcuse. Também representante da Teoria Crítica, Marcuse assimila a obra de Horkheimer e Adorno e segue além para alcançar a utopia.
Marcuse é um pensador engajado nos movimentos políticos, ativista, diferente dos teóricos anteriores, mais acadêmicos. Suas obras mais importantes foram produzidas já na prosperidade do capitalismo pós-guerra – Eros e Civilização e Ideologia da Sociedade Industrial – O Homem Unidimensional – e isso influenciou a sua maneira de tratar as teorias de Frankfurt.
No seu “Homem Unidimensional”, Marcuse defende uma dialética do esclarecimento própria e afirma que a prática política radical do sujeito está estancada ou neutralizada pela sociedade capitalista que vivia, a dos anos 50, na medida em que o sistema econômico criava falsas necessidades para os indivíduos e mantinha uma estrutura de produção para atendê-las constantemente. Somente uma crise econômica ou uma revolução cultural contra as falsas necessidades poderia romper esse círculo.
Em relação a Freud, Marcuse adota uma posição contrária a ideia de sociedade repressora do indivíduo, defendendo a possibilidade, ao menos em tese, de uma sociedade “não-repressora”.
Essa sociedade da liberdade era a sociedade comunista. Para Marcuse, as condições materiais para essa sociedade referencial poderiam ser fornecidas pela ciência então conhecida. Se na tese clássica do materialismo histórico era preciso uma transição pelo socialismo para que as forças de produção alcançassem seu ponto mais elevado, para Marcuse essa etapa já estava preenchida pelo próprio capitalismo.
O conflito entre capital e trabalho, condição necessária para a ação política em direção à sociedade comunista, passava a ter outra formatação, numa tensão marcuseana entre a repressão social excedente, característico do período, e o potencial social para se contrapor à repressão – além da náusea como modo de vida. A pobreza do materialismo clássico, motivadora da ação política, é substituída pela abundância das falsas necessidades atendidas.
Marcuse pretendia, com esses desdobramentos, historicizar a Psicanálise de Freud para combater o ceticismo freudiano em relação à mudança social.
Como Freud explicava isso? Segundo o autor, havia um descompasso entre o princípio do prazer que rege a psique humana e a vida em sociedade. Esse descompasso era a causa da infelicidade humana.
Mas o descompasso, na visão de Freud, não poderia ser superado pela mudança social. Não havia um modelo social compatível com o princípio do prazer. A condição biológica da humanidade, à qual são inerentes os instintos violentos e agressivos, como fator imutável e trans-histórico, é que impede que haja a superação. Ou seja, por mais que o sujeito promova revoluções ou mudanças radicais no meio social, a sua psique não encontrará uma relação harmoniosa e feliz nesse âmbito. A característica social do homem é, por isso, uma artificialidade somente pensável em termos de repressão constante e frustração.
É preciso observar, no entanto, que a Psicanálise não se opõe ao utopismo apenas porque não acredita na bondade da natureza humana, entendendo-se que o princípio do prazer, em qualquer situação social estaria sempre atuando de forma mesquinha e destrutiva. Ela se opõe por questão de princípio mesmo, levando em consideração os riscos da chamada onipotência do indivíduo.
Como seria possível uma sociedade totalmente livre, não repressora, diante da característica instintiva de onipotência? Todo o desenvolvimento do indivíduo deve ser permeado necessariamente pela repressão dessa característica, que é extremamente perigosa à sua existência e dos demais indivíduos. A aceitação da alteridade e da finitude da vida humana, são aprendizados inafastáveis para as crianças, e constituem, em sua essência, também restrições ou repressões à sua liberdade. Como isso ocorreria na utópica sociedade livre?
Considerações finais

Haveria hoje espaço para utilizar a Psicanálise aliada às proposições da Teoria Crítica?
O início do trabalho conjunto foi promovido pela emergência do fascismo e das formas de dominação e autoridade violentas do início do século XX. Os teóricos sociais neomarxistas da Escola de Frankfurt, diante dessa situação e desprovidos de categorias que lhes auxiliassem a encontrar respostas razoáveis à realidade que os pressionava, encontraram apoio na Psicanálise para suplementar as contribuições do marxismo e assim entender melhor o que estava acontecendo. Se os indivíduos estavam agindo de modo irracional, submetendo-se voluntariamente a regimes opressores, as ideias de Freud pareciam apropriadas para interpretar esse comportamento.
Atualmente, o fundamentalismo religioso e o terrorismo muitas vezes a ele associado poderiam se tornar um novo campo de estudos para uma Teoria Crítica associada à Psicanálise. O irracionalismo e a violência extrema promovida por grupos fundamentalistas certamente demandariam uma pesquisa psicanalítica para buscar uma explicação a este fenômeno recente.


Bibliografia

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MARCUSE, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial: o homem unidimensional. 4ª edição, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Uma Crítica Filosófica ao Pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.
NOBRE, Marcos. A Teoria Crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
ROUANET, Sérgio Paulo. Teoria Crítica e Psicanálise. 3ª edição, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
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